Justiça reconhece família multiespécie e devolve cão a morador de rua
Carlos Merlini Neto, 46, viu seu cachorro, Rock, ser atropelado em maio deste ano, em Curitiba. O cão, da raça fila brasileiro, de sete meses, que havia sido resgatado por sua companheira em uma rodoviária da região, teve as costelas fraturadas após o acidente e foi levado a um abrigo da prefeitura da cidade. Entretanto, sem maiores informações, os tutores quase tiveram seus destinos separados do animal de estimação.
Há 10 anos em situação de rua no centro da cidade, Carlos vivia com a companheira e o animal. Mas ao tentar reencontrá-lo depois de não ter informações sobre o estado de Rock no abrigo, foi informado pelo Centro de Defesa Animal que o bicho estava na fila de adoção e já havia pessoas interessadas nele. Felizmente, uma ação inusitada na Justiça reconheceu o cãozinho como parte de sua família.
Separados por estar em situação de rua
Separado de Rock, Carlos passou 17 dias tentando encontrá-lo, mas tinha como resposta que não poderiam informar o local em que o cão estava.
Eu fui atrás e não sabiam, falaram que mesmo que soubessem, não poderiam passar nenhuma informação do animal, que tinha que ligar 156. Tentei ligar, mas eles não explicaram onde estava o animal. Falavam que estava em tratamento e depois entregavam, mas ele já estava para adoção. Carlos em entrevista ao UOL
Sem alternativas, Carlos buscou o amparo da Defensoria Pública do Estado do Paraná, que acolheu seus apelos.
"Nesse período do tratamento, Carlos tentou ter acesso ao cão por visitas, sendo negado e informado que ele estaria direcionado para um setor de adoção, com pretendentes habilitados para adotá-lo. Justificando que o fato de Carlos ser pessoa em situação de rua o impediria de cuidar bem do cachorro", diz Regiane de Souza, defensora pública do Estado do Paraná, que atuou na defesa de Carlos.
Justiça reconhece que cachorro faz parte de família multiespécie
A defensoria fez um pedido na Justiça, que reconheceu a família como multiespécie e culminou com na determinação do 15º Juizado Especial da Fazenda Pública de Curitiba, que obrigava o município a localizar e entregar o animal de volta a Carlos.
"A doutrina passou a utilizar o termo 'direito das famílias', e não apenas direito da família. Essa pluralidade é justamente por reconhecer múltiplas espécies de família, não havendo um modelo único. Dentre essas, há o reconhecimento da família multiespécie, formada pelo ser humano e seus animais, sendo reconhecida tanto pela doutrina jurídica como pela jurisprudência, conforme decisões do STF", diz Souza.
Souza ainda defende que o direito à presença do animal pode ser ainda mais crucial para pessoas em condições como a de Carlos.
Para pessoas em situação de rua, que têm laços familiares e sociais rompidos, os animais de estimação muitas vezes são o único elo familiar e de afeto que possuem. Afinal, enquanto são ignorados pela sociedade, seus animais lhe atribuem afeto e consideração que não recebem das demais pessoas. Regiane de Souza, defensora pública do Estado do Paraná, que atuou na defesa de Carlos
Um membro da família que tem até RG
Outro ponto crucial para o reconhecimento do animal foi um cuidado que Carlos tomou logo ao adotar Rock. "A gente mora na rua e o Rock é bonitinho, sempre tínhamos medo de alguém levar ele, então para comprovar que a gente que é tutor dele, fizemos a certidão de nascimento e a identidade dele."
Na identidade canina, enviada à reportagem pelo próprio Carlos, é possível ver o sobrenome atribuído ao cãozinho.
Nós colocamos o sobrenome porque ele é como filho, a gente cuida dele como filho, da roupinha, faço tudo que posso. Ele é bem tratado. As pessoas ajudam bastante, recebemos ração dos comerciantes locais. Mas ainda estou preocupado, preciso arranjar um lugar para a gente. Carlos Merlini Neto, tutor do cão Rock