Não compete ao comandante da PM questionar juiz, dizem especialistas

Causou estranheza a uma magistrada do Tribunal de Justiça de SP, a um tenente-coronel da reserva da PM de SP, a um ex-ouvidor das polícias de SP e a um procurador aposentado da Justiça de SP o fato de o comandante-geral Polícia Militar paulista ter enviado um ofício a um juiz sugerindo a troca de uma medida cautelar. Ainda mais em um processo de policiais réus por homicídio -um crime hediondo.

O comandante-geral da PM, coronel Cássio Araújo de Freitas, enviou na segunda-feira (22) um ofício ao juiz Thomaz Correa Farqui, da 3ª Vara Criminal de Guarujá, sugerindo que o magistrado troque a decisão de suspender das funções públicas dois PMs da Rota -réus por um dos 28 homicídios da Operação Escudo- por apenas afastá-los das atividades operacionais.

Antes de incluir o ofício nos autos do processo, policiais militares foram até o fórum do Guarujá para tentar entregar o documento ao juiz pessoalmente.

Ofício enviado pelo comandante-geral da PM a juiz que tornou réus dois PMs da Rota por homicídio e fraude processual na primeira das 28 mortes cometidas por policiais na Operação Escudo
Ofício enviado pelo comandante-geral da PM a juiz que tornou réus dois PMs da Rota por homicídio e fraude processual na primeira das 28 mortes cometidas por policiais na Operação Escudo Imagem: Reprodução/TJ-SP

A desembargadora Ivana David, da 7ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de SP, ao ler o ofício enviado pelo comandante ao juiz, disse ao UOL que a atitude foi algo novo para ela.

"Causa estranheza já que o comandante nem sequer é parte para qualquer postulação nos autos do processo. Teoricamente, o policial acusado está representado nos autos por seu advogado. Esse, sim, com capacidade processual para pedir qualquer modificação de uma decisão judicial", disse a desembargadora.

Cássio Araújo de Freitas, comandante-geral da Polícia Militar de São Paulo
Cássio Araújo de Freitas, comandante-geral da Polícia Militar de São Paulo Imagem: Divulgação/PM-SP

O tenente-coronel da reserva da PM de SP Adilson Paes de Souza reforçou o argumento da magistrada. "Em 30 anos de policial, nunca vi uma medida dessa. Não sei quais motivos levaram o comandante a fazer isso, mas não é um pedido usual", disse.

Souza, que também é pesquisador em segurança pública, complementou que "não compete ao comando da PM questionar diretamente uma decisão judicial. Quem deve questionar é o réu através dos advogados. As partes interagem nos autos através dos advogados".

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Após também ler o ofício, o advogado Roberto Tardelli, procurador de Justiça aposentado do TJ-SP, afirmou que, pelo que está escrito, o comandante não cumpriu a ordem judicial. "Se ele tivesse cumprido a ordem, todos os efeitos que ele diz que são indesejáveis já teriam ocorrido", analisou.

"Esse ofício é criminoso. É uma desobediência. Para atender um sentimento pessoal corporativista. Isso tem nome: prevaricação. Ele não tem que defender. Ele tem que cumprir a ordem. Isso não existe", afirmou Tardelli.

O que vai esperar do soldado que está na rua, no enfrentamento da criminalidade com relação a população? Quem tem que dar o exemplo não dá.
Roberto Tardelli, procurador de Justiça aposentado do TJ-SP

Já para Benedito Mariano, ex-ouvidor das Polícias de SP, o ofício é "um absurdo" e "estimula a impunidade": "É uma referência da gestão do atual secretário de segurança pública. Não é uma boa iniciativa, direta ou indiretamente. Estimula a violência."

Questionada sobre o ofício do comandante-geral, a SSP (Secretaria da Segurança Pública) afirmou que o documento "visa exclusivamente esclarecer questões de ordem administrativa, de forma a garantir o fiel cumprimento da decisão judicial".

Defesa dos PMs pede revogação

A defesa dos dois policiais pediu à Justiça a revogação da medida cautelar que os suspendeu de suas funções públicas. Os advogados formularam o pedido "em caráter de urgência", argumentando que a medida produz "consequências irreparáveis" aos réus.

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"Ambos exercem suas funções com muito empenho e profissionalismo, não possuindo, saliente-se, qualquer condenação administrativa, a revelar a reputação ilibada conquistada ao longo de mais de duas décadas de dedicação à corporação", dizem os advogados dos policiais nos autos.

Os dois PMs da Rota contrataram o mesmo escritório de advocacia, o Fernando José da Costa Advogados, cujo dono é o secretário municipal de Justiça da Prefeitura de SP. Nos autos, os defensores afirmam que Verardino é policial militar há 22 anos e que Silva trabalha na corporação há 26.

Capitão Marcos Verardino, réu por ação na Operação Escudo
Capitão Marcos Verardino, réu por ação na Operação Escudo Imagem: Reprodução/TJ-SP

O escritório também é o mesmo que presta serviços ao secretário da Segurança Pública do Estado, Guilherme Derrite, em uma ação movida por ele contra um cidadão que o chamou jocosamente de "DeHitler".

Assim como o comandante da PM, a defesa contratada pelos PMs defende que o afastamento das atividades operacionais seria menos prejudicial, classificando a suspensão como uma "verdadeira antecipação da condenação".

Cabo Ivan Silva, réu por ação durante a Operação Escudo
Cabo Ivan Silva, réu por ação durante a Operação Escudo Imagem: Reprodução/TJ-SP
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Nos autos, o Ministério Público defendeu que o pedido da defesa dos policiais não merece ser acolhido: "A nobre defesa não logrou demonstrar alteração da situação fática ensejadora da sua decretação."

A reportagem pediu à assessoria de imprensa da SSP (Secretaria da Segurança Pública) entrevistas com os dois policiais. O pedido não foi atendido. A pasta informou não comentar decisões judiciais.

Registro fotográfico de perícia feita no local da primeira morte cometida por PMs durante a Operação Escudo, em 28 de julho de 2023, no Guarujá (SP)
Registro fotográfico de perícia feita no local da primeira morte cometida por PMs durante a Operação Escudo, em 28 de julho de 2023, no Guarujá (SP) Imagem: Reprodução/TJ-SP

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