Mamonas e Marília foram vítimas: por que divulgar fotos de corpos é crime?
Do UOL*, em São Paulo
09/08/2024 16h39
A queda de uma aeronave com 62 pessoas em Vinhedo (SP) na tarde de sexta-feira (9) é o tipo de acidente que costuma despertar interesse por imagens da tragédia. Segundo o Governo do Estado de São Paulo, não há sobreviventes. Nas redes sociais, fotos e vídeos do local são compartilhados, mas divulgar imagens de corpos na internet pode ser configurado como um crime de vilipêndio de cadáver.
O que é vilipêndio a cadáver
O crime é previsto no artigo 212 do Código Penal Brasileiro. Trata-se do desrespeito diante do corpo ou das cinzas de uma pessoa morta, tratados com desdém. É o ato de fazer com que alguém se sinta humilhado, menosprezado ou ofendido.
O vilipêndio ocorre por meio de palavras, gestos ou ações. A atitude pode ser praticada de várias formas, como o que aconteceu com fotos da autópsia de Marília Mendonça, que foram vazadas na internet. Imagens de integrantes da banda Mamonas Assassinas também foram divulgadas na época.
A pena para o crime é a detenção de um a três anos e multa. Em 2015, uma discussão semelhante ocorreu quando fotos e vídeos do corpo do cantor Cristiano Araújo circularam pela internet. Na época, foi concluído que as pessoas que compartilharam o conteúdo não tinham a intenção de vilipendiar o cadáver e, por isso, não houve crime.
Por que há interesse por imagens mórbidas?
O compartilhamento de imagens de tragédias é comum e independe do contexto. O ato ocorre tanto quando a vítima é uma personalidade e gera comoção nacional ou porque o fato ocorreu em situação rotineira, como uma viagem de avião.
A sensação de incredulidade leva ao movimento de confirmar o ocorrido, daí surge a curiosidade. Em outros casos, há um sentimento de proximidade da vítima, mas a mobilização afetiva leva ao desejo negativo de ver e compartilhar imagens para "fazer parte" do acontecimento.
No fundo, o interesse é uma busca por respostas. Segundo o psicanalista Leonardo Goldberg, doutor em psicologia pela USP, o imaginário e a arte medieval representaram de forma bastante direta a faceta de uma curiosidade sobre a morte. E como a morte é uma espécie de mistério, só é possível ter indícios desse fato a partir da morte de outra pessoa.
Nesse sentido, há um esforço para encontrar uma razão para a morte: azar, saúde, contexto. "E, entendendo essa razão, eu poderia me proteger da ideia da minha própria morte", diz Goldberg.
Atualmente, a internet amplifica a curiosidade das pessoas. O psicanalista é autor do livro Das Tumbas às Redes Sociais - Um Estudo sobre a Morte e o Luto na Contemporaneidade. Em seus estudos sobre o tema, ele descobriu sites e páginas em redes sociais voltadas a imagens da morte, comportamento que chamou de voyeurismo da morte. Na rede, fotos e vídeos permanecem por muito tempo e são facilmente acessíveis.
Esquadrinhar e racionalizar a morte de outro serve como anteparo para eu me angustiar menos com a possibilidade da minha própria morte. Há uma função nisso. Leonardo Goldberg, psicanalista e doutor em psicologia pela USP
Goldberg lembra que, no digital, há um colapso entre o que é público e o que é privado, além de haver falhas de proteção de dados. Por isso, a internet torna-se um meio para esmiuçar a morte do outro ao mesmo tempo que simplifica e amplifica a curiosidade por imagens mórbidas.
Além de ser crime, essas atitudes trazem impactos imensuráveis. "Como não há vítima do crime, pois não há mais o sujeito, o bem lesado é a memória, a lembrança e o respeito", completa o especialista.
*Com informações de reportagens publicadas em 14/04/2023 por Tilt e VivaBem