Periferia de Porto Alegre tem 'bairros-fantasmas' três meses após enchentes
Priscila Pasko, do Nonada Jornalismo
Colaboração para o UOL, de Porto Alegre (RS)
16/08/2024 12h00
O bairro Sarandi, na periferia da zona norte de Porto Alegre, é um dos mais populosos da cidade e foi o mais impactado na capital pela enchente no Rio Grande do Sul, que deixou centenas de feridos, 182 mortos e 29 desaparecidos. A água invadiu o bairro no dia 3 de maio depois que transbordou em dois pontos do Dique Sarandi, que represa o Rio Gravataí. Ao todo, 26 mil dos 91 mil moradores foram de alguma forma impactados.
A reportagem visitou o local no final de julho, três meses após as enchentes, e presenciou uma espécie de "bairro-fantasma". Muitos moradores ainda não retornaram e estão em casas de parentes ou abrigos. Eles visitam o local, abrem as casas para a retirada da sujeira incrustada nos cômodos e logo partem. A permanência no bairro não sustenta, por enquanto, a retomada da rotina.
No prédio onde o aposentado Carlos Santos Almeida, 53, e a pedagoga Vera Regina de Almeida Almeida, 50, moram, por exemplo, dos oito apartamentos, apenas três estão ocupados. O casal ficou abrigado por um parente e retornou para casa um mês depois da enchente. "Você não tem um posto médico perto, não tem nada. O abandono é o natural", diz o aposentado. No bairro, o serviço de saúde continua sendo feito em uma unidade móvel.
Nas casas dos quarteirões próximos a eles, janelas e portas fechadas, nenhum sinal de movimentação, exceto naquelas em que pequenos grupos, ou apenas uma pessoa, usam mangueiras, lava-jatos, vassouras e baldes para retirar as camadas de lama. Embora a coleta de lixo tenha sido retomada, há resquícios da água da enchente margeando as calçadas, o que ainda deixa um forte odor no ar.
Segundo os moradores, caminhões da prefeitura retiraram parte dos entulhos e o barro, mas ainda assim, o receio é que as poças atraiam o mosquito da dengue e que as bocas de lobo não sejam limpas, provocando alagamentos.
Não era assim. Era tudo sequinho, limpinho. Tinha até árvore. Aquela ali está seca, a enchente matou. Agora é essa sujeira aqui
Ubaldina Oliveira, 76, moradora do Sarandi
Segundo a prefeitura, as equipes do Departamento Municipal de Limpeza Urbana realizam serviço de lavagem diariamente no bairro, mas a limpeza total do lodo depende de um tempo mais seco.
Para uma catástrofe tão grande, a retomada exige várias etapas. Além da remoção do lixo, do barro - em grande parte, com resíduos de esgoto -, da limpeza das residências e do descarte de utensílios domésticos e móveis, também é preciso retomar a normalidade dos comércios e principais aparelhos públicos.
Enquanto o comércio local tenta se recompor aos poucos com alguns estabelecimentos reabrindo, como os mercadinhos, as escolas continuam em reformas. O maior estabelecimento municipal de ensino da cidade, a Escola Liberato Salzano, que atende 1.700 alunos, permanece fechado. Os estudantes estão tendo aulas no Clube Comercial Sarandi e na Casa Paroquial São Jorge, espaços alternativos. Segundo a prefeitura, a reforma na Salzano deve se iniciar na segunda quinzena de agosto e ela não tem previsão de reabertura.
Para suprir os prejuízos causados pela enchente, a prefeitura de Porto Alegre informou ter requisitado R$ 12,3 bilhões para o governo federal. Também confirmou que 878 famílias do Sarandi que perderam totalmente suas residências estão recebendo auxílios mensais de R$ 1 mil, no total de 12 parcelas, enquanto aguardam as residências definitivas.
"Os moradores dos bairros Sarandi serão os primeiros beneficiados com novas casas, principalmente aqueles que habitavam construções irregulares próximas aos diques", diz a prefeitura. Outra ação anunciada foi o reforço no dique Sarandi.
Área metropolitana também buscar retomar rotina
Segundo o pesquisador André Augustin, do Observatório das Metrópoles, as regiões mais atingidas foram aquelas que concentram maior número de moradores com baixa renda. É o caso do bairro Mathias Velho, na cidade de Canoas, na região metropolitana de POA.
Na casa de Lúcia dos Santos Schwaab, 62, e Paulo Araí Schwaab, 66, a geladeira e o fogão foram os únicos utensílios que se salvaram depois da enchente que quase alcançou o forro da casa. O retorno só foi possível dois meses depois e por conta do apoio de familiares que fizeram um mutirão de limpeza. "A casa estava pura lama", conta Lúcia.
Eles mostraram à reportagem a cozinha já montada, fruto de doações de familiares. A casa dos dois é uma das poucas do bairro que não exibe uma montanha de entulhos na calçada, graças à oferta de um amigo, que retirou a sujeira com um caminhão.
No dia em que a reportagem visitou o bairro, em meados de julho, alguns caminhões da prefeitura faziam a limpeza em uma rua próxima. As montanhas na rua ao lado mostravam que a demanda é grande.
O bairro tem se transformado aos poucos. Na quadra onde mora o casal, um bar e uma loja de vestuário estão fechados. Mas um pequeno mercado voltou a abrir as portas. "Foi bom, pois não tínhamos comércio próximo", conta Lúcia. A avenida Rio Grande do Sul, a poucos quilômetros dali, portanto, mais distante, é onde passou a concentrar um número maior de estabelecimentos comerciais.
Eduardo Schwaab, 32, um dos filhos de Lúcia e Paulo, conta que as grandes redes de supermercado ainda não reabriram, apenas alguns estabelecimentos de pequeno porte.
O transporte público e a coleta de lixo foram retomados. O Hospital de Pronto Socorro de Canoas, localizado no bairro Mathias Velho, e que também foi atingido pela enchente, ainda não reabriu. Eduardo comenta que a prefeitura disponibilizou uma tenda para atendimento de campanha, localizada no estacionamento do HPS, e em mais outros dois bairros. Mas, como o serviço é limitado, os moradores acabam sendo encaminhados para as unidades de saúde. Ao todo, 14 unidades estão abertas em Canoas.
Quando esteve no bairro, a reportagem viu poucos moradores circularem pela rua e um pequeno grupo manuseando uma lava-jato contra as paredes de uma casa que carregava os traços do alagamento. "Parece que aqui está estagnado, não sei, uma aparência triste. Parou tudo. O pessoal anda meio perdido. A gente nota que não é mais a mesma Mathias. Vai demorar um pouco para voltar ao normal", comenta Lúcia.
É neste ambiente que muita gente pensa em ir embora. Paulo escuta pela vizinhança pessoas comentarem sobre o desejo de deixar Mathias Velho. Contudo, após a enchente, as chances de atrair compradores das casas caíram e os imóveis desvalorizaram.
Estão vendendo casa barata e se mandando. Não sabem quando vai dar [enchente] de novo. (...) Conheço muito bar por aí, e eles estão fechando
Pedro Machado de Aguiar, morador do Mathias Velho
"Mas a maioria está tentando recomeçar. O problema é pensar se pode acontecer de novo, né? Ninguém sabe quando", rebate Paulo. Ele e a esposa moram há 41 anos em Mathias Velho, que cresceu e mudou bastante desde então. "A gente se acostumou, foi fazendo amizade. A vizinhança também é muito boa. A vida da gente é aqui. Até onde dar, a gente vai ficando."
A prefeitura de Canoas informou que 81 equipamentos públicos foram atingidos na cidade. Das 41 escolas municipais atingidas, 21 já retornaram e mais 12 devem retornar nos próximos dias. As demais ainda precisam de adequações, com retorno previsto para o mês que vem. Por enquanto, os alunos foram remanejados para outras escolas da região. Entre as 19 unidades de saúde atingidas, seis retornaram, 12 estão em reforma e uma não deve retornar.
Até o momento, cerca de 1,5 mil canoenses atingidos pelas enchentes receberam um auxílio municipal. A prefeitura também informa que todos os resíduos foram recolhidos das ruas ainda em julho. O município também solicitou ao governo federal a recomposição das receitas.
*Esta reportagem foi realizada com apoio do Pulitzer Center ao Nonada Jornalismo.