Facção que domina presídios do RJ 'protege' estupradores; veja estatuto
O Povo de Israel, facção que domina os presídios do Rio de Janeiro, foi formada há 20 anos por presos por estupro, inicialmente em busca de melhores condições no sistema prisional. Eles são "protegidos" pelo próprio estatuto da organização criminosa, obtido pelo UOL.
O que diz o estatuto
Estatuto "isenta" presos por estupro ou por outros crimes que poderiam torná-los vulneráveis a ataques de outros detentos. "Do portão pra dentro, zera tudo", diz o 1º mandamento do documento anexado ao inquérito da Polícia Civil, que investiga a facção criminosa por suspeita de movimentar mais de R$ 67 milhões em golpes do falso sequestro em dois anos (veja abaixo o estatuto do Povo de Israel).
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"No Povo de Israel, não é permitido falar 'estuprador', temos que falar 'amigo do artigo' porque o espaço é deles", diz o 2º mandamento. "O nosso lema é dormir e acordar tranquilo", cita a 3ª norma do grupo, indicando que detentos nesses presídios não são ameaçados de morte em decorrência dos crimes pelos quais foram presos.
Presos por estupro, feminicídio ou ameaçados por facções foram recrutados nos últimos anos, segundo a Polícia Civil. Hoje, o Povo de Israel age em 13 presídios do Rio que abrigam mais de 18 mil detentos, superando a quantidade de internos ligados às facções que dominam o tráfico, como CV (Comando Vermelho) e TCP. A facção, inclusive, já teve conversas com o PCC, que queria permissão para batizar membros em presídios dominados pelo Povo de Israel.
O que dizem os especialistas
O Povo de Israel foi criado por presos por estupro, delatores e ameaçados de morte, que antes ficavam no 'seguro'. Depois, foram levados para três unidades prisionais. Eles eram isolados. Em um dos presídios, ficavam em uma espécie de porão na cadeia. Foi quando se organizaram e passaram a ter voz para exigir melhores condições. Ao longo dos anos, se especializaram em extorsão por telefone.
Anderson Sanchez, pesquisador e especialista em Segurança Pública
Quando há uma rebelião, quem morre primeiro são os estupradores. Abandonados e hostilizados pelos outros presos, eles agora decidem criar uma facção com um recorte da população prisional marginalizada pelo crime organizado para buscar proteção e também para lucrar com o golpe do falso sequestro pelo celular.
Ivana David, desembargadora do TJ-SP especialista em investigações sobre facções
É uma facção que também lucra com venda de celular, bebidas e drogas exclusivamente no sistema prisional, sem território no tráfico nas favelas do Rio. Ela controla os presídios que recebem expulsos do convívio prisional de outras facções, mas também os que se declaram 'neutros', que não querem ir para um presídio do CV ou do TCP por não terem relação com esses grupos ou porque uma declaração de vínculo pode impactar no processo.
Socióloga Carolina Grillo, coordenadora do Geni/UFF
Como age a facção
Venda de drogas, bebidas e celulares usando o próprio presídio como balcão de negócios. Em setembro de 2023, policiais penais encontraram mais de 20 kg de drogas, 71 celulares e outros equipamentos, em carga de R$ 1,5 mi. O material estava em quentinhas em uma van no presídio Nelson Hungria, no Complexo de Gericinó, em Bangu, zona oeste do Rio. No mesmo mês, policiais penais foram presos com 200 tabletes de maconha no presídio Romeiro Neto.
Movimentação milionária com golpe do falso sequestro ou "disque-extorsão". Com celulares fornecidos por membros do grupo chamados de "empresários", os "ladrões" ficam encarregados das ligações. O dinheiro obtido no golpe é encaminhado a contas de "laranjas" fora do sistema prisional, indica a Polícia Civil. A investigação rastreou uma movimentação de mais de R$ 67 milhões em dois anos.
Rebeliões com mortes. Após um pedido de isolamento de membros da facção ter sido negado pela Seap em 2004, eles são suspeitos de dar início a uma rebelião que deixou oito internos mortos no presídio Ary Franco. O Povo de Israel também é suspeito de ter liderado outra rebelião em julho de 2021 no presídio Romeiro Neto, em Magé, que deixou um morto ao ter o corpo queimado e quatro internos feridos.
Assassinatos por enforcamento. Dois internos do presídio Romeiro Neto foram encontrados mortos por enforcamento em 2022. Os crimes teriam sido motivados por suposto plano de sequestro da filha de um ex-detento que integrava a facção.
Quem são os líderes
O líder. Avelino Gonçalves Lima, conhecido como Alvim ou Vilão, ingressou no sistema prisional fluminense há 25 anos. Ficou foragido após ser beneficiado pela visita familiar em 2007 e só foi recapturado dois anos depois. Condenado a 46 anos de prisão, possui investigações por homicídio, roubo e estupro. Ordens sobre expulsão de membros, rebeliões, tentativas de fuga e crimes partem dele, segundo a investigação.
Homem sob as ordens de Vilão. Com condenações que somam 48 anos de prisão, Marcelo Oliveira da Anunciação, o Tomate, tem 12 anotações por crimes como homicídio, roubo, estelionato e estupro. Ele repassou ordens do líder da facção por WhatsApp mesmo atrás das grades, proibindo extorsões nos 13 presídios sob o domínio do grupo em mensagens enviadas em 11 de outubro de 2022, às vésperas do Dia das Crianças.
As 13 aldeias de Israel, para roubo, para tudo. Pode transmitir essa mensagem nas 13 cadeias, Nem (...). Vilão mandou parar tudo. Para quem pode, e obedece quem tem juízo (...). Alô, quartel da tropa de Israel. Zero horas, para tudo. Ordem do patrão. Se pagar para ver, já sabe. Salve as criancinhas. Um feliz Dia das Crianças para todo mundo. Forte abraço.
Mensagens de WhatsApp repassadas por Tomate
O sucessor. Ricardo Luis Martins Dias Júnior, o Da Lua, teria assumido a liderança do grupo no lugar de Alvim no período em que ele esteve em um presídio federal, indicam as investigações. Ele foi condenado a 29 anos de prisão.
O responsável pelas finanças. Jailson dos Santos Barbosa, o Nem, é apontado pelas investigações como o responsável pela contabilidade da facção criminosa. Ele foi condenado a 36 anos de prisão.
Líderes e suas companheiras movimentaram, juntos, R$ 10 milhões em operações suspeitas. A investigação rastreou uma movimentação milionária de Da Lua, Nem e das suas companheiras, as investigadas Nubia Beatriz Silva dos Santos e Arianne Freire da Silva.
O UOL não localizou os representantes legais dos investigados citados na reportagem. O espaço segue aberto para manifestação.