Obra em SP pode 'expulsar' 200 famílias de casa: 'Lutei para construir'
A aposentada Rosália Maria Luciano, 76, estava prestes a começar uma reforma na casa dela, uma das dezenas da favela Sousa Ramos, em São Paulo, quando ouviu de vizinhos que a comunidade seria destruída para a construção de dois túneis na Vila Mariana.
"Foi muita luta para construir isso daqui", disse ao UOL na sala de casa. "Tive dois filhos. Um morreu, e o mais velho mora na parte de cima. A luta foi só eu sozinha para fazer essa casa, sou viúva, e agora essa obra. Para quê começar reforma agora? Vai que tem que sair", lamentou Rosália, enquanto apontava para a expansão da casa que ela ampliou desde que chegou na década de 1980.
A ideia da prefeitura é construir dois túneis com duas faixas cada, em sentidos contrários, no cruzamento da rua Sena Madureira com a rua Domingos de Morais. Segundo a gestão Ricardo Nunes (MDB), o Complexo Viário Sena Madureira, como o projeto foi batizado, beneficiará mais de 800 mil pessoas. Além da saída das favelas Sousa Ramos e Coronel Luis Alves, que juntas contam com cerca de 200 famílias, 172 árvores devem ser removidas.
Relacionadas
Rosália não consegue enxergar esse suposto benefício. Idosa e com mobilidade reduzida —ela tem artrose nos dois joelhos—, a acessibilidade em uma eventual mudança é outra preocupação que passa pela cabeça dela. "Estou pedindo a Deus, dia e noite, para me deixar quieta no meu canto", disse.
No momento, a construção dos túneis está paralisada após duas decisões judiciais suspenderem as obras. As determinações ressaltam o possível impacto ambiental e a presença das favelas, o que é rebatido por Nunes. "Temos o licenciamento ambiental. Essas famílias estão morando em condições não adequadas, elas vão passar a morar em condições adequadas", disse o prefeito em um vídeo publicado no Instagram.
Um dos argumentos utilizados pelos moradores da Sousa Ramos é que a favela fica localizada em Zonas Especiais de Proteção Ambiental (ZEPAM) e de Interesse Social 1 (ZEIS-1). As favelas são rodeadas por condomínios de prédios.
Falta de comunicação
Os moradores da favela Sousa Ramos também afirmam que não foram avisados pela prefeitura sobre a retomada das obras. "Quando chegaram, em meados de setembro, vieram muitos tratores, caminhões. Eles foram se espalhando e os funcionários diziam para a gente que era limpeza de boca de lobo", disse ao UOL Eduardo Canejo, presidente da associação de moradores da comunidade.
O projeto da Queiroz Galvão, atual Álya Construtora, foi contratado em 2011, sob a gestão Gilberto Kassab (PSD), mas até hoje não foi entregue. Em 2018, o então prefeito foi acusado de receber R$ 1 milhão em propina, o que ele nega. Ricardo Nunes retomou o contrato no início deste ano.
Canejo disse que representantes da prefeitura ofereceram indenizações de cerca de R$ 60 mil ou um auxílio aluguel até um imóvel ser cedido pelo município. "Isso para mim é terrível. Eu nem faço 'plano b' porque intuo que nós vamos ficar", afirmou o presidente da associação.
A gente tem fé que vamos reverter isso. Apelamos primeiro a Deus e depois para as leis. Não tem sentido esse prefeito, de uma hora para outra, querer passar por cima dos nossos direitos Anália Maria do Nascimento, 57, aposentada, moradora da comunidade Sousa Ramos
Mas há quem seja a favor da obra. Wallace Dias, presidente da associação de moradores da favela vizinha, a Coronel Luis Alves, vê a construção dos dois túneis como uma oportunidade para mudarem de vida. "É uma possibilidade de sair da informalidade devido aos problemas sociais que temos instalados há anos", disse ao UOL.
Os moradores dessa outra comunidade tentam na Justiça conseguir o usucapião para adquirir os imóveis —que, segundo eles, estão em terreno privado— e negociar com a prefeitura. "As famílias querem sair da informalidade, querem sair da favela. Ou não querem que a gente saia?", indagou Wallace.
Ele cita a insegurança, falta de iluminação pública e saneamento básico como alguns dos problemas na comunidade. "É uma 'precarização estratégica'. A prefeitura precariza para que você fique dependente", opina.
A Prefeitura de São Paulo não respondeu aos questionamentos enviados pelo UOL. O espaço segue aberto para manifestação.
Obra é um 'remédio vencido', diz professor
Para o arquiteto e urbanista Valter Caldana, professor da Mackenzie, a obra é como um "remédio vencido". "Essa obra padece de um problema, como algumas outras obras feitas em São Paulo: é uma solução de antigamente, remédio vencido. E remédio vencido faz mal", analisa, em entrevista ao UOL.
Segundo o especialista, o projeto dos túneis pensa no trânsito de veículos, mas esquece da mobilidade em um aspecto mais amplo. "Há uma diferença entre você melhorar a mobilidade e melhorar o trânsito. O que aprendemos em 30 anos é que, hoje, não adianta falar em trânsito sem falar em mobilidade. Essa é uma obra feita para automóvel", explica. "Uma obra desse tamanho tem que pensar na habitação, em equipamentos do entorno, pensar na vida das pessoas", acrescenta.
Caldana ressalta o impacto ambiental e social. "Uma intervenção urbana desse tamanho começa muito antes da obra, num modelo de cidade. Qual é a cidade que nós queremos? Quando isso começou a ser pensado e projetado, a cidade que eles tinham em mente era uma. A cidade hoje é outra", observa.