Justiça libera registro de moradia social a comprador acima da renda
O Tribunal de Justiça de São Paulo liberou o registro de imóveis classificados como moradia social comprados por quem está fora do limite de renda definido em lei.
Mas há uma condição: os cartórios deverão notificar a prefeitura e também o Ministério Público sobre o não cumprimento da política destinada a famílias de baixa renda na capital.
Desde 2014, a Prefeitura de São Paulo oferece incentivos fiscais e urbanísticos para a construção de HIS (Habitação de Interesse Social) e HMP (Habitação Mercado Popular) pela iniciativa privada.
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As incorporadoras que aderem ao modelo recebem desconto ou isenção completa da taxa cobrada para liberação de prédios sem limite de altura.
O objetivo dessa política, prevista no Plano Diretor, é aproximar trabalho de moradia e adensar regiões da cidade com transporte público de alta capacidade, como corredores de ônibus e estações de metrô.
Em troca, as construtoras devem se comprometer a vender as unidades apenas para famílias que recebem de zero a três salários mínimos (faixa HIS 1), de três a seis salários mínimos (HIS 2) ou de seis a dez salários mínimos (HMP).
Mas, na prática, não é isso que ocorre em todas as negociações.
Denúncias de fraudes na utilização dos benefícios levaram a Promotoria de Habitação de Urbanismo a instaurar um inquérito civil para apurar responsabilidades por parte do mercado e omissão do poder público na fiscalização do instrumento que torna a construção mais barata.
Cerca de 240 mil apartamentos estão na mira do MP. Parte deles foi erguida em bairros nobres como Pinheiros, Vila Madalena e Vila Olímpia, onde o valor do metro quadrado pode chegar a R$ 24 mil.
Decisão assegura direito do consumidor
Com a abertura da investigação, a administração Ricardo Nunes (MDB) criou novos mecanismos para tentar controlar o destino das moradias erguidas com isenção.
Passou a exigir, por exemplo, que os compradores apresentem uma certidão que ateste sua renda na hora de registrar os imóveis em cartório.
A regra gerou dúvidas sobre qual postura deveria ser tomada pelos cartórios em caso de ausência da certidão e foi parar na Justiça.
Segundo decisão do Conselho Superior da Magistratura do TJ-SP, a "inobservância da faixa de renda destinatária da unidade de HIS", assim como o "desatendimento da contrapartida de benefícios fiscais e urbanísticos concedidos aos promotores de HIS", não impedem o acesso ao registro imobiliário pelo consumidor final.
Isso quer dizer que os cartórios deverão registrar a escritura do imóvel mesmo que o comprador tenha renda familiar superior ao limite definido pela legislação municipal, que é de R$ 8,8 mil para HIS 2.
Relator de um caso analisado pelo conselho, o desembargador Francisco Loureiro ressaltou que "o controle da legalidade dos incentivos ofertados pelo município não se faz mediante a devolução do título", mas mediante a notificação expressa à prefeitura e ao Ministério Público, para apuração dos fatos e aplicação das sanções e penalidades cabíveis.
Loureiro analisou o recurso de um comprador de HIS 2 que teve o registro do imóvel negado por ter renda superior a seis salários mínimos.
Ao decidir a favor do consumidor, o desembargador ressaltou que a legislação municipal não estabelece a nulidade do negócio neste caso, mas outros tipos de sanção.
Presidente da Arisp (Associação dos Registradores Imobiliários de São Paulo), George Takeda explicou ao UOL que a decisão do TJ respalda a atuação dos cartórios no registro de HIS e HMP.
"Na primeira instância, a Justiça havia decidido pela impossibilidade do registro caso o proprietário não comprovasse que estava dentro da renda. Mas quem comprou tem os seus direitos e isso foi garantido agora", explica Takeda.
Nesses casos, no entanto, o cartório ficará responsável por informar o descumprimento da regra.
"Ainda estamos definindo como se dará essa comunicação. Temos feito reuniões com a prefeitura para a criação de um sistema que transmita os dados em tempo real", diz.
Incertezas levam compradores a negociar distrato
Os remendos na legislação que permitiu a construção de moradia social em São Paulo mediante subsídio público têm gerado mais dúvidas do que certezas aos consumidores.
Diante do risco de não conseguir financiamento bancário para saldar o débito assumido ou da obrigação de só poder alugar o imóvel para famílias de baixa renda pelo prazo de dez anos, parte dos compradores desavisados opta pelo distrato.
E é aí que surgem novos problemas. Apesar de não informarem o consumidor sobre as condições das unidades enquadradas como HIS e HMP, as incorporadoras dificultam a rescisão dos contratos.
O UOL apurou que algumas empresas cobram multas —equivalentes à taxa de corretagem, por exemplo— e se negam a devolver o dinheiro empregado à vista e com correção monetária.
Outras ainda exigem acordos de confidencialidade para seguir com o processo.
O sigilo favorece as construtoras, que estão sujeitas ao pagamento em dobro da taxa não recolhida caso se comprove fraude na utilização da política municipal.
Cálculo da renda ainda suscita dúvidas
Especialista em direito notarial, o advogado Marcus Vinicius Kikunaga diz que a decisão da Justiça confere "segurança jurídica" ao processo de registros de HIS e HMP, mas ainda não elucida todos os aspectos relacionados às regras desse tipo de imóvel.
"Qual a renda que deve ser apurada, por exemplo? A renda bruta do comprador? No momento do contrato particular, no plantão de vendas ou no momento da escrituração definitiva? Essas dúvidas são pertinentes porque muitas pessoas apresentam uma renda quando negociam a aquisição do imóvel e outra na hora de fechar o financiamento", explica.
Outras indefinições preocupam compradores desavisados.
Pelas regras estabelecidas em decreto municipal editado em janeiro deste ano, contratos de locação também devem respeitar o público-alvo. Mas esse controle é considerado ainda mais complexo, abrindo brecha para locações informais.
Para advogados especialistas em direito imobiliário, políticas municipais não podem se sobrepor a direitos constitucionais, como o da propriedade privada.
O UOL apurou que o entendimento da gestão Nunes vai na mesma linha da Justiça: responsabilizar as construtoras que fraudam a política e proteger os direitos do consumidor que adquiriu uma HIS sem saber.
As primeiras multas pelo não cumprimento das contrapartidas pelas construtoras serão aplicadas no início de 2025. E devem parar novamente na Justiça.