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A civilização dos conflitos: enfatizar nossas diferenças nos permite alocar poder de formas repugnantes e discriminatórias

Mohsin Hamid*

The New York Times

28/12/2010 13h00

Recentemente, eu passeava pelos canais de Amsterdã com um casal de amigos, imigrantes paquistaneses. Eles estavam preocupados. O líder do terceiro maior partido do Parlamento holandês havia pedido a proibição do Corão. As atitudes em relação aos muçulmanos estavam se tornando hostis. Um pensamento estranho pairava sobre mim conforme vagávamos próximo aos cafés que vendem maconha e as vitrines para as prostitutas legais: o pensamento de que Anne Frank, enquanto lembrança permanente de uma intolerância enlouquecida, poderia ser o anjo protetor dos muçulmanos de Amsterdã. Como é triste pensar que nesta cidade, com a história que possui, uma minoria religiosa necessite, mais uma vez, de um guardião deste tipo.

A suspeita sobre os muçulmanos certamente não está restrita à Europa. No início deste ano, em uma viagem do Paquistão à Nova York com minha mulher e minha filha de colo, deparei-me, como de costume, com a variação americana do mesmo tema no aeroporto JFK. Enviado para segunda inspeção, cercado de outras pessoas com nomes que soavam muçulmanos, esperei a minha vez de ser examinado. Por fim, o momento chegou: o oficial perguntou se eu já havia ido ao México ou se havia recebido treinamento de guerra, enquanto digitava devagar algo a meu respeito em um arquivo eletrônico que não parava de crescer.

Como resultado, fomos os últimos passageiros de nosso voo a pegar os pertences, um conjunto de malas e um berço dobrável solitários na esteira de bagagens agora imóvel. E até sairmos do terminal do aeroporto para a luz do sol, nosso coração continuava batendo de uma forma que não condizia com meu status de visitante com os documentos em ordem.

Quando voltamos ao Paquistão, uma onda de choque proveniente de um ataque de terroristas suicidas, o último ataque mortal de militantes com o objetivo de desestabilizar o país, atravessou o escritório de minha irmã em Lahore. A explosão matou diversas pessoas de um edifício do governo, mas aconteceu longe o bastante da universidade onde minha irmã leciona para que ninguém se ferisse no campus e para não estilhaçar os vidros das janelas. Entretanto, a explosão abriu a porta de seu escritório, pressionando-a com força que a deixou entreaberta, como um fantasma saindo para o corredor.

Algumas pessoas podem argumentar que episódios como esse são sinais de um confronto entre civilizações. Mas eu não acho que seja o caso. Os indivíduos possuem pontos em comum que ultrapassam as fronteiras entre os países, as diferentes religiões e idiomas e, em um país, existem diferenças dividindo as pessoas que têm a mesma religião e falam o mesmo idioma. A ideia de que nos dividimos em diversas civilizações é meramente um mito conveniente politicamente.

Pegue duas civilizações conceituais: a saber, a muçulmana e a ocidental. A qual civilização eu e meu amigo paquistanês em Amsterdã pertencemos? Eles, por exemplo, são seculares e acreditam em direitos iguais independente de gênero ou orientação sexual. Eu, um cidadão paquistanês residente no Paquistão, passei 17 anos nos Estados Unidos, um período maior do que o tempo de vida de mais de 70 milhões de americanos nascidos em 1993.

Nós, muçulmanos ocidentalizados e indivíduos ocidentais convertidos ao islã, seremos desconsiderados por sermos minorias recém-estabelecidas e não representativas, certo? Na verdade, não. Voe de Lahore até Madri e descobrirá que as palavras para camisa, calça e sabão são praticamente as mesmas nos dois lugares, a evidência linguística para o fato de que as pessoas sempre se misturaram.

É verdade que assassinos paquistaneses detonaram bombas aqui, matando todos os anos milhares de pessoas. Também é verdade que alguns paquistaneses se encaixam no estereótipo do militante pobre e radicalizado, educado em seminário. Entretanto, eles vivem em uma nação em que menos de 10% votam em candidatos de partidos religiosos de direita e onde os que assistem televisão são uma maioria em rápido crescimento.

Os programas televisivos paquistaneses são incrivelmente diversificados por uma boa razão: o país é diversificado. A onda de propulsão que atravessou o escritório de minha irmã certamente passou por muçulmanos devotos, ateus, gays, engraçados e enamorados; sem falar dos paquistaneses cristãos, engenheiros chineses, prestadores de serviços de segurança americanos e siques indianos em peregrinação. Que civilização, nesse caso, foi o alvo da bomba? E de qual civilização ela partiu?

As civilizações são ilusórias. Mas são ilusões úteis. Elas permitem que neguemos nossa humanidade comum, para alocar poder, recursos e direitos de forma repugnante e discriminatória.

Para manter a eficácia dessas ilusões, elas precisam estar associadas a algo inegavelmente real. Esse algo é a violência. As civilizações não causam os conflitos. São os conflitos que permitem que finjamos pertencer a uma civilização.

No Paquistão, eu vivo, de certo modo, tradicionalmente: pertenço a uma família estendida. Meus pais construíram sua casa junto à de meus avós. Minha mulher e eu construímos nosso apartamento em cima da casa de meus pais.

Nossa filha precisava de um quarto. Por isso, transformamos nossa sacada, adicionando um telhado de metal corrugado com isolante de espuma e janelas bem sombreadas, com camada dupla de vidro.

O quarto era claro, barato, eficaz em termos de consumo de energia e rápido de construir. Em outras palavras, tudo o que queríamos. Porém, depois nos ocorreu que as janelas do quarto ficavam em frente de uma estrada principal. A noventa metros havia escritórios, lojas e bancos. Locais que, às vezes, sofrem ataques em nossa cidade.

Decidi perguntar a um amigo arquiteto se deveria considerar incluir uma película à prova de explosivos na janela. Embora quatro gerações de minha família tenham vivido sempre no mesmo local, esta era uma pergunta que nenhum de nós tinha feito antes. Eu não sabia se este tipo de película era eficaz ou quanto custaria.

Não me admiraria se elas fossem produzidas em fábricas do Ocidente, por funcionários muçulmanos, pelos dois ou nenhum deles. Eu me admiraria, em vez disso, se elas fossem claras de verdade. Pois, do lado de fora do quarto de minha filha, tem uma árvore amaltas, repleta de flores amarelas, linda e imensa, e muito mais velha do que todos nós.

Eu não queria escurecer a visão da minha filha para essa árvore.

* Mohsin Hamid é autor dos romances “O Fundamentalista Relutante" e "Moth Smoke"