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Mesmo após Fukushima muitas autoridades ainda defendem a energia nuclear como opção segura, limpa e verde

Helen Caldicott

26/12/2011 06h00

O terremoto e a tsunami que atingiram o Japão no dia 11 de março deixaram 22.000 mortos e desaparecidos. Eles também deram início a uma série de acidentes nas instalações da usina de energia nuclear de Fukushima Daiichi, o que reabriu uma discussão mundial sobre os benefícios e armadilhas da energia nuclear. 

É hora de superarmos as campanhas da indústria nuclear e reconhecermos que o desastre do Japão é uma "catástrofe médica descomunal" –que deve gerar o desenvolvimento de formas verdadeiramente verdes de energia.

A indústria da energia nuclear foi retomada na última década após um forte lobby que fez muitos acreditarem ser uma alternativa limpa aos combustíveis fósseis, verde e livre de emissões. Essas crenças impuseram uma ameaça extraordinária à saúde pública mundial e têm sido um dreno financeiro importante sobre as economias nacionais e os contribuintes. O compromisso com a energia nuclear como uma fonte de energia ambientalmente segura também abafou o desenvolvimento de tecnologias alternativas que são muito mais baratas, seguras e quase livres de emissões –o futuro para a energia global. 

Quando os reatores de Fukushima Daiichi derreteram em março, literalmente no quintal de um público insuspeito, a dura realidade que os riscos da energia nuclear superam muito qualquer benefício deveria ter ficado clara para o mundo. Como dizem: "A energia atômica é um jeito terrível de ferver água". 

Em vez disso, a indústria nuclear usou o desastre para aumentar seus esforços de lobby já extensivos. Algumas nações prometeram reduzir a energia nuclear após o desastre. Muitas outras, porém, continuaram firmes em seu compromisso. 

Isso fez com que milhões de pessoas inocentes permanecessem ignorantes quanto ao fato que elas –e todos nós- poderiam enfrentar uma catástrofe médica de proporções sem precedentes após Fukushima e com o uso contínuo e amplo de energia nuclear. 

O mundo foi advertido dos perigos dos acidentes nucleares há 25 anos, quando Chernobyl explodiu e lançou elementos radioativos na atmosfera. Esses elementos venenosos "choveram", criando pontos quentes pelo hemisfério Norte. Pesquisadores na Europa Oriental coletaram dados e publicaram na "New York Academy of Sciences" estimativas que 40% da terra europeia hoje está contaminada com césio 137 e outros venenos radioativos que vão se concentrar na cadeia alimentar por milhares de anos. Amplas áreas da Ásia –desde a Turquia até a China-, os Emirados Árabes Unidos, o Norte da África e a América do Norte também estão contaminados. Quase 200 milhões de pessoas continuam expostas. 

Essa pesquisa estima que cerca de 1 milhão de pessoas morreram de causas ligadas ao desastre de Chernobyl. Elas pereceram de câncer, deformidade congênita, deficiências imunológicas, infecções, doenças cardiovasculares, anormalidades endócrinas e fatores induzidos pela radiação que aumentaram a mortalidade infantil. Estudos em Belarus concluíram que, em 2000, 14 anos após o desastre de Chernobyl, menos de 20% das crianças foram consideradas "praticamente saudáveis", enquanto antes de Chernobyl eram 90%.

Agora, Fukushima foi chamado o segundo maior desastre nuclear após Chernobyl. Muito ainda é incerto sobre suas consequências de longo prazo. Fukushima pode muito bem se equiparar ou até exceder em muito Chernobyl em termos dos efeitos à saúde pública, com novos dados ainda sendo revelados. A crise não acabou: a usina continua instável, e as emissões de radiação continuam no ar e na água. 

Recente monitoramento feito por grupos de cidadãos, organizações internacionais e o governo norte-americano revelaram pontos perigosos em Tóquio e outras áreas. Enquanto isso, o governo japonês suspendeu em setembro último a recomendação de evacuação de algumas áreas próximas à usina –apesar dos níveis ainda altos de radiação. O governo estima que vai gastar ao menos US$ 13 bilhões (em torno de R$ 23 bilhões) para limpar a contaminação. 

 

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Milhares de pessoas continuam habitando áreas que estão altamente contaminadas, particularmente no noroeste de Fukushima. Elementos radioativos foram depositados por todo o Japão, encontrados na água corrente de Tóquio e concentrados no chá, carne, arroz, e outros alimentos. Em um dos poucos estudos da contaminação humana após o acidente, mais da metade de mais de 1.000 crianças cujas tireoides foram monitoradas na Cidade de Fukushima estavam contaminadas com iodo 131 –condenando muitas a câncer de tireoide no futuro. As crianças são naturalmente sensíveis aos efeitos carcinogênicos da radiação, e os fetos ainda mais.

Como Chernobyl, o acidente em Fukushima tem proporções mundiais.

Níveis incomuns de radiação foram encontrados na British Columbia, na Costa Oeste e na Costa Leste dos EUA e na Europa; águas oceânicas também apresentaram concentrações elevadas. 

Fukushima foi classificado como acidente de grau 7 na escala da Agência Internacional de Energia Atômica –denotando "efeitos amplos na saúde e no ambiente". Esta é a mesma severidade de Chernobyl, o único outro acidente de grau 7 na história, mas não há número mais alto na escala da agência.

Após o acidente, os lobbys alegaram que haveria uma melhoria na segurança das instalações nucleares do mundo todo. No Japão, a Tokyo Electric Power Co. –que opera os reatores de Fukushima Daiichi- e o governo procuraram controlar os relatos de histórias negativas pelas empresas de telecomunicações e provedoras de Internet.

No Reino Unido, o "Guardian" informou que, dias após o tsunami, as empresas com interesses em energia nuclear –Areva, EDF Energy e Westinghouse- trabalharam junto ao governo para relativizar o acidente, temendo revezes nos planos para novas usinas nucleares. 

A energia nuclear sempre foi o cavalo de Troia nefasto da indústria de armas, e as campanhas de publicidade eficazes são a marca das duas indústrias. O conceito da eletricidade nuclear foi concebido no início dos anos 50 como forma de tornar o público mais confortável com o desenvolvimento norte-americano de armas atômicas. "A bomba atômica será aceita com muito mais facilidade se ao mesmo tempo a energia atômica estiver sendo usada para fins construtivos", sugeriu um consultor do Conselho de Estratégia Psicológica do Departamento de Defesa, Stefan Possony.

A frase "Átomos pela Paz" foi popularizada pelo presidente Dwigth Eisenhouwer no início dos anos 50.

A energia nuclear e as armas nucleares são a mesma tecnologia. Um reator de 1.000 megawatts gera 270 kg de plutônio por ano: uma bomba atômica exige uma fração dessa quantia como combustível, e o plutônio continua radioativo por 250.000 anos. Portanto, todo país que tenha uma planta nuclear tem também uma fábrica de bombas com potencial ilimitado. 

A indústria de energia atômica estabelece um precedente imperdoável, exportando tecnologia nuclear –fábricas de bombas- para dezenas de nações não nucleares. 

Por que a energia nuclear ainda é viável, depois de termos testemunhado acidentes catastróficos, investimentos financeiros enormes, proliferação de armas e epidemia de doenças genéticas e tumores induzidos pelo lixo atômico por gerações? Simplesmente porque muitos governos e outras autoridades acreditam no lema da indústria: energia segura, limpa e verde. E o público não sabe o suficiente a respeito. 

Há alguns sinais de mudança. A Alemanha vai eliminar totalmente seu uso de energia nuclear até 2022. A Itália e a Suíça decidiram contra e ativistas antienergia atômica no Japão ganharam força. A China continua cautelosa sobre a energia nuclear.

Ainda assim, o entusiasmo nuclear dos EUA, Reino Unido, Rússia e Canadá continua inabalado. A indústria, enquanto isso, promove novos reatores modulares "avançados" como alternativas melhores aos reatores tradicionais. Contudo, são sujeitos aos mesmos riscos –acidentes, ataques terroristas, erro humano- que os reatores tradicionais. Muitos também criam material físsil para bombas, sem contar o legado do lixo radioativo.

Existem soluções verdadeiramente limpas, quase livres de emissões e verdes para o fornecimento de energia. Elas são uma combinação de conservação e de fontes de energia renovável, principalmente energia eólica, solar e geotérmica, hidrelétrica e de biomassa de algas. Uma rede inteligente poderia integrar aparelhos consumidores e produtores, permitindo uma operação flexível de eletrodomésticos. O problema da energia intermitente pode ser resolvido pela armazenagem de energia com as tecnologias disponíveis.

Milhões de empregos podem ser criados pela substituição de energia nuclear por sistemas de energia renovável, integrada. Só nos EUA, esse projeto poderia ser pago com os US$ 180 bilhões hoje alocados em programas de armas nucleares para a próxima década. Não haveria necessidade de novas armas, se os arsenais russos e americanos nucleares fossem abolidos -que perfazem 95% das 20.500 armas nucleares do mundo todo.

Defensores da energia nuclear muitas vezes chamam aqueles que se opõem à ela como Luditas que têm medo ou não compreendem a tecnologia ou como histéricos que exageram os perigos da energia nuclear.

Podemos lembrar do ataque sustentado de décadas pela indústria de tabaco sobre os médicos –a profissão que revelou o grave perigo à saúde induzido pelo fumo.

Fumar, genericamente falando, só mata o fumante. A energia nuclear traz mortalidade e morbidade –epidemias de doenças- a todas as futuras gerações.

As milhões de vidas perdidas ao fumo antes dos riscos do cigarro serem expostos serão ínfimas comparadas à catástrofe médica que enfrentamos pelo uso continuado da energia nuclear. 

Vamos usar este momento extraordinário para convencer os governos e as pessoas a ingressarem num mundo livre de energia nuclear. Vamos provar que as democracias informadas se comportam de forma responsável.

* Helen Caldicott é pediatra e presidente da organização Médicos pela Responsabilidade Social. Australiana de nascença, ela deixou seu cargo na Escola de Medicina de Harvard em 1980 para trabalhar com a educação antinuclear.