Penúria mobiliza brasileiro a fazer documentário sobre refugiados na Hungria
Pedalando pelas ruas de Budapeste, a capital da Hungria, foi que o escritor e cineasta brasileiro Márcio-André, 37, teve o primeiro contato com os refugiados que estão na cidade. Ele passava por uma praça, a João Paulo 2º, e viu um acampamento improvisado. Chegou mais perto para ver o que acontecia ali, um lugar pouco frequentado por turistas, e descobriu paquistaneses, sírios, afegãos à espera da chance de pegar um trem para a Alemanha.
Márcio começou a frequentar a praça como voluntário, compartilhou algumas fotos com os amigos, que também se interessaram, e foi acompanhando esse trânsito de grupos por vários locais de Budapeste, até o que ocorreu no último domingo (30).
“Eles estavam espalhados pela cidade e se juntaram em Keleti para se manifestar”, diz o cineasta, que foi ao terminal ferroviário naquele dia, pela primeira vez, porque queria ajudar. Viu milhares de pessoas protestando para conseguir pegar os trens rumo à Alemanha e à Áustria. Muitas tinham passagens compradas, mas não podiam embarcar.
Márcio está na Hungria há cerca de quatro meses para gravar um filme. Carioca, ele mora na Espanha faz sete anos, mas como namora uma húngara, fica sempre entre os dois países.
Por trabalhar com imagens, ele naturalmente levou consigo até Keleti a câmera que costuma usar. Observou um momento, fotografou. Viu outra cena, gravou. Acabou retornando todos os dias desta semana e chegou a virar a noite na estação para reunir material a ser transformado em um curta-metragem.
“Me interessei em ajudar, em um primeiro momento. Colocaram eles ali acampados com um banheiro só, agora colocaram alguns banheiros químicos, mas são poucos, uns cinco ou seis. E só tem um ponto de água, uma torneira”, ele conta. “Está muito insalubre, né, eu moro a dez minutos da estação, posso ir e voltar”.
Na terça-feira (1º), o governo húngaro decidiu suspender todas as partidas e chegadas, mas a concentração de pessoas no terminal só aumentou. O tráfego foi retomado no mesmo dia, mas muitos refugiados ainda tinham dificuldade para viajar. Novos protestos foram feitos por eles na estação lotada de gente.
Quando conseguiam embarcar, os refugiados eram retirados dos trens no meio do caminho e obrigados a seguir viagem de outras formas. E na quinta-feira (3), o cineasta Márcio pôde entender ‘na pele’ um pouco do que eles enfrentam.
“Eu estava esperando uma pessoa que vinha da Áustria. Quando perguntei se o trem ia chegar a Keleti, fui tratado pelo agente de informações como se fosse um refugiado”. O funcionário da estação, com quem Márcio conversava em inglês, bateu o olho nele e já foi dizendo que não tinha jeito, que todas as viagens estavam suspensas.
“Eu sou um brasileiro típico, mestiço. Os húngaros nunca sabem de onde venho, pensam que do Oriente Médio ou da Índia”, ele diz. Até conseguir explicar que estava ali para receber um passageiro, a conversa foi difícil.
O amigo do cineasta vindo da Áustria tinha sido obrigado a trocar de trem quando saía de lá e, preocupado com as confusões que poderiam ocorrer no meio do caminho para a Hungria, desistiu e voltou para casa.
A experiência em Keleti tem alguns de seus momentos divididos no Facebook, no perfil de Márcio-André:
“Não é sempre que vemos a história acontecendo na porta de nossa casa. Tenho passado meus últimos dias aqui na estação de Keleti, com minha câmera de filmar, acompanhando o estado de purgação em que os refugiados vindos de Síria e Afeganistão em direção à Alemanha foram submetidos pela desUnião Europeia”.
“A desolação, tristeza e apatia são gerais. O marasmo das crianças correndo sob o sol forte só é quebrado pelas manifestações regulares, nas quais os refugiados vão para os portões da estação apelar por uma quase inalcançável ajuda por parte de Alemanha (que já disse aceitar os sírios, ainda que estes misteriosamente não consigam pegar os trens referentes aos tíquetes que compraram, uma vez que a Áustria não deixa entrar nada)”.
E o que foi mais chocante nesses dias?
“Deixa eu pensar...", disse ele à reportagem do UOL, na conversa por telefone, logo depois de passar a manhã desta sexta-feira na estação de trem. "Na verdade, em vez de me chocar, algumas cenas me maravilharam. As crianças, em geral, têm esse poder de comoção. Elas querem ver o que estou fazendo, pedem para serem fotografadas, querem participar de alguma maneira.”
O número de crianças em Keleti o surpreendeu: “É a quantidade de crianças que dá alegria ao lugar. Elas ficam brincando o tempo todo, jogando, talvez não sintam o mesmo peso que os adultos sentem”.
“Todo dia tem manifestação, e em uma delas, os adultos saíram andando e gritando. Um garotinho saiu atrás deles e a mãe não deixou ele ir. Ele conseguiu se livrar e voltou, cheio de marra, gritando: ‘Liberdade, liberdade!’. O espírito revolucionário e reivindicatório era muito forte nele.”
Nesses seis dias em contato com os refugiados, tão marcante quanto as crianças foi o momento em que 2.000 pessoas decidiram partir em marcha até a fronteira com a Áustria porque não conseguiram usar os trens. “Eu filmei eles atravessando o Danúbio, passando pelo meio da cidade. (...) É tudo muito intenso, é muita coisa que acontece, vou levar alguns dias para entender.”
“O mais preocupante, no final das contas, é a situação dessas pessoas em relação ao governo europeu, que diz uma coisa, mas faz outra. A Angela Merkel [chanceler alemã] disse que ia receber os sírios, mas não se sabe quem faz acordo com quem. Quem está bloqueando a saída? O governo da Hungria é de direita, quer se livrar deles. Isto é o mais chocante para mim, essa macro-política. Tratam a situação como um caso fronteiriço, de polícia, quando, na verdade, é um caso social.”
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