Por que o cidadão irlandês vota sobre aborto e casamento gay e você não
Na sexta-feira (25), a República da Irlanda foi às urnas decidir sobre sua legislação em relação ao aborto - uma das mais restritivas da Europa até então. Com a vitória do "sim", agora novas leis poderão ser criadas, regulando o direito ao fim da gravidez no país de maioria católica.
Será a 36ª consulta popular no país desde que a Constituição de lá foi ratificada, em 1937. Em 2015, por exemplo, os irlandeses tornaram legal o casamento gay.
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No Brasil, no mesmo período, foram feitas apenas cinco consultas populares. Por aqui, temas delicados são decididos na maior parte das vezes pelas vias jurídicas ou no Congresso. O que explica essa diferença?
Para o professor afiliado do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas da USP, Rolf Rauschenbach, o fato de a nossa Constituição poder ser alterada por emendas, enquanto alguns países exigem participação popular para essas mudanças, é uma das explicações o baixo número de referendos no Brasil.
Desde que nossa Constituição foi promulgada em 1988, mais de cem emendas foram realizadas.
O que é um referendo?
O referendo é um instrumento para que a população participe diretamente das decisões de um país. Pode ser consultivo (apenas para saber a opinião do povo sobre algum assunto) ou deliberativo, com força para alterar a lei do país. No caso da Irlanda, a seguinte frase será apresentada: "Provisões poderão ser feitas por lei para a regulamentação da interrupção da gravidez". Os irlandeses poderão escolher "Sim" ou "Não".
Se o "Não" vencer, o aborto continuará proibido na Constituição e restrito a alguns casos - como aqueles em que a saúde da mãe corre o risco. Mas se o "Sim" vencer, o aborto não estará permitido automaticamente - isso representaria apenas a possibilidade de os legisladores irlandeses estabelecerem novas regras para a interrupção da gravidez.
A decisão de quando um referendo deve ser convocado varia de país a país. No Brasil, apenas o Congresso pode convocar, quando julgar que um tema é de importância tal que a população deve ser consultada.
A Constituição brasileira também diferencia o referendo do plebiscito. Segundo nossa lei, referendos servem para aprovar uma lei já criada, enquanto plebiscitos consultam a população sobre uma ideia, para depois criar a lei.
O referendo faz da Irlanda um país mais democrático que o Brasil?
Desde que a Constituição de 1988 foi promulgada, apenas um plebiscito e um referendo foram realizados no Brasil em nível nacional.
“Quando a gente analisa a influência ou o poder do povo para a mudança constitucional, com certeza isso é um indicador de que a Irlanda é mais democrática do que o Brasil, que não prevê esse mecanismo constitucional”, diz Rauschenbach.
Mas, ressalta o professor, não se pode focar apenas nesse aspecto. “A qualificação de um país ser mais ou menos democrático de um ponto de vista científico é muito complicada”, explica.
Para ele, essa diferença da qualidade democrática entre os dois países se dá muito mais por outros aspectos, como o fato de a população irlandesa, em geral, ter mais acesso à educação (e por isso poder opinar com mais subsídios em diferentes temas), ou o fato de haver uma distribuição de renda mais igualitária no estado europeu.
“Todas as questões deveriam entrar na equação e não apenas um evento político quase singular”, conclui.
Por que não temos mais referendos no Brasil?
O primeiro plebiscito da atual Constituição aconteceu em 1993, quando a população decidiu sobre o sistema político a ser adotado no país. Venceu a república presidencialista. Já o referendo aconteceu em 2005, e os brasileiros foram consultados a respeito da proibição da comercialização de armas de fogo.
Rauschenbach explica que o fato de termos tido apenas essas experiências dificulta a interpretação do processo de consulta popular no Brasil, já que não há outras referências.
Ainda assim, defende, o fato de não haver obrigatoriedade para um referendo ser convocado no país faz com que essas votações sejam por vezes motivadas por intenções ou táticas políticas que não estão diretamente ligadas ao tema votado, mas que atendem aos interesses de uma força política no poder.
“Por que votar hoje sobre aborto, por exemplo, e não sobre impostos, educação, saúde... outra coisa?”, questiona.
O referendo sobre as armas serve como exemplo ao argumento da aleatoriedade.
“Não vou dizer que ele foi organizado com uma motivação puramente oportunista, acho que houve boas intenções e seria injusto argumentar dessa forma. Mas era essa a questão mais importante na época? Ou houve outras questões ao menos tão importantes quanto o porte de armas? Por que não houve referendo sobre essas outras questões?”
Para que uma nova consulta popular aconteça hoje no Brasil, é necessário que ao menos um terço da Câmara ou do Senado aprove a ideia. Mas, lembra Rauschenbach, essa decisão está sujeita a diversas pressões e agendas, ao jogo social e político.
“Não podemos ver a consulta popular como um mecanismo independente do resto da infraestrutura ou da concepção política de um país. Para a democracia direta funcionar, precisa haver também um parlamento e um judiciário que funcione. Infelizmente, hoje no Brasil, nós não temos isso e seria problemático apostar agora de repente em consultas populares para resolver todos os problemas. É muito provável que isso leve a uma confusão maior ainda”, conclui o professor.
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