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Altos executivos compraram passaportes de ilha na África para driblar sanções contra Irã

Vista do porto de Moroni, capital das Ilhas Comores, na África - Antony Njuguna/Reuters
Vista do porto de Moroni, capital das Ilhas Comores, na África Imagem: Antony Njuguna/Reuters

Bozorgmehr Sharafedin e David Lewis

Da Reuters, em Londres (Inglaterra) e Nairóbi (Quênia)

04/07/2018 04h00

Em janeiro, as Ilhas Comores cancelaram discretamente muitos de seus passaportes comprados por estrangeiros nos últimos anos. A minúscula nação além da costa leste da África não publicou mais detalhes sobre seus motivos, dizendo apenas que os documentos foram emitidos de forma imprópria.

Mas uma lista confidencial dos recebedores dos passaportes, analisada pela agência Reuters, indicou que a medida significava mais do que o governo havia revelado. A Reuters descobriu que mais de 100 das 155 pessoas que tiveram seus passaportes das Ilhas Comores cancelados em janeiro eram iranianas. Entre estes estavam executivos de empresas que trabalham em transporte, petróleo, gás, câmbio e metais preciosos, todos setores que foram alvo das sanções internacionais contra o Irã. Alguns compraram mais de um passaporte das Ilhas Comores.

Diplomatas e fontes de segurança nas Ilhas Comores e no Ocidente dizem acreditar que alguns iranianos adquiriram passaportes para proteger seus interesses à medida que as sanções minavam a capacidade do Irã de realizar negócios internacionais. Apesar de nenhuma das pessoas ou empresas envolvidas serem alvos individuais das sanções, as restrições ao Irã faziam um segundo passaporte ser de grande ajuda. Os passaportes das Comores oferecem viagem isenta de visto para partes do Oriente Médio e do extremo Oriente e podiam ser usados pelos iranianos para a abertura de contas em bancos estrangeiros e o registro de empresas no exterior.

O governo iraniano não permite formalmente que cidadãos do país tenham uma segunda cidadania. Mas uma fonte iraniana familiarizada com a compra de passaportes estrangeiros disse que o Ministério da Inteligência iraniano deu sinal verde para que alguns executivos importantes os adquirissem para facilitar viagens e negócios.

O governo iraniano e sua embaixada em Londres não responderam aos pedidos de comentário.

Houmed  Msaidie, um ex-ministro do Interior das Ilhas Comores que ocupava a pasta quando alguns dos passaportes foram emitidos, disse que suspeita que alguns iranianos estavam "tentando usar Comores para contornar as sanções". Ele disse que pressionou por uma maior checagem antes da emissão de passaporte para estrangeiros, mas não disse como nem o que aconteceu.

O Tesouro americano se recusou a comentar, dizendo que não discute investigações em andamento.

Kenneth Katzman, um especialista em Oriente Médio do Serviço de Pesquisa do Congresso dos Estados Unidos, disse que Comores é uma das nações africanas onde o Irã tenta exercer influência comercial e diplomática. "Ter um passaporte das Comores permite a eles fazer coisas sem serem sinalizados como iranianos", ele disse à Reuters.

Ao todo, mais de mil pessoas cujo local de nascimento foi listado como sendo o Irã compraram passaportes das Comores entre 2008 e 2017, segundo detalhes de um banco de dados de passaportes das ilhas analisado pela Reuters. A maioria foi comprada entre 2011 e 2013, quando as sanções internacionais foram endurecidas, particularmente contra os setores bancário e petrolífero do Irã.

Outros estrangeiros que compraram passaportes das Comores incluem sírios, afegãos, iraquianos, chineses e um punhado de ocidentais.

As sanções internacionais contra o Irã foram relaxadas após o acordo fechado em 2015 visando impedir o desenvolvimento pelo Irã de armas nucleares. Em maio, o presidente Donald Trump retirou os Estados Unidos do acordo, dizendo que ele era "falho" e um "horrível acordo unilateral". De lá para cá, o Tesouro dos Estados Unidos impôs novas sanções contra pessoas ligadas à Guarda Revolucionária do Irã, ao programa de mísseis do país, algumas companhias áreas e serviços de transferência de dinheiro. Sanções americanas adicionais entrarão em vigor em agosto e novembro.

25.fev.2009 - Os então presidentes do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, e das Comores, Ahmed Abdallah Mohamed Sambi, acenam para o público em Moroni - Reuters - Reuters
Em 2009, os então presidentes do Irã, Mahmoud Ahmadinejad (à esq.), e das Ilhas Comores, Ahmed Abdallah Mohamed Sambi, acenam para o público em Moroni
Imagem: Reuters

Os compradores

As Ilhas Comores, uma nação de cerca de 800 mil habitantes, iniciaram seu programa de venda de passaportes em 2008 como forma de arrecadar dinheiro. As ilhas fecharam um acordo com os governos dos Emirados Árabes Unidos e do Kuait, que queriam fornecer documentos de identidade a habitantes dali sem nacionalidade conhecidos como bidunes, mas sem lhes conceder cidadania. Os governos comprariam os passaportes de Comores e então os concederiam aos bidunes.

Em troca, as Comores receberiam várias centenas de milhões de dólares em ajuda para desenvolvimento de sua economia, cujo produto interno bruto anual é de apenas US$ 600 milhões.

Na época, as Comores também estavam estabelecendo laços com o Irã. O presidente das ilhas entre 2006 e 2011 era Ahmed Abdallah Mohamed Sambi, que estudou por anos na cidade sagrada iraniana de Qom.

Sambi tinha iranianos entre seus guarda-costas, segundo cidadãos locais com os quais a Reuters falou e pesquisa realizada pelo centro de estudos Chatham House, além de ter sido apelidado de "aiatolá das Comores" por alguns comorenses. Em 2008, ele visitou Teerã. Na época, o então presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, estava cultivando relações com países africanos e latino-americanos à medida que o Ocidente dava suas costas a Teerã. Ahmadinejad retribuiu com uma visita às Comores no ano seguinte.

Mais de 300 passaportes das Comores foram vendidos para iranianos enquanto Sambi estava no poder, segundo dados analisados pela Reuters. O ex-presidente, que foi interrogado pelas autoridades comorenses como parte de sua investigação do esquema de cidadania econômica, não respondeu aos pedidos de comentário.

Sambi está sob prisão domiciliar desde 19 de maio, após ser acusado pelo governo de incitar distúrbios. Em 23 de junho, Jean-Gilles Halimi, um advogado de Sambi, disse que as restrições impostas ao ex-presidente são uma tentativa de "eliminar um rival".

As vendas de passaportes prosseguiram sob o sucessor de Sambi, Ikililou Dhoinine, que ocupou a Presidência de 2011 a 2016. Ikililou, que não tem laços óbvios com o Irã, não respondeu aos pedidos de comentários.

Segundo dados analisados pela Reuters, entre os iranianos que compraram passaportes das Comores enquanto as sanções eram endurecidas contra o Irã e enquanto Ikililou estava no poder estavam:

- Mojtaba Arabmoheghi, citado pelo governo em 2011 como um dos mais altos executivos do setor petrolífero do Irã. Ele obteve passaporte das Comores em outubro de 2014, quando era presidente da Sepehr Gostar Hamoun, uma empresa de comércio internacional, que não era alvo das sanções. Em 2016, Arabmoheghi também era consultor de uma empresa de comércio dos Emirados Árabes Unidos chamada Silk Road Petroleum. O diretor financeiro da empresa, Naser Massomian, também iraniano, adquiriu um passaporte das Comores no mesmo dia que Arabmoheghi.

Arabmoheghi e Masoomian não responderam aos pedidos de comentário. A Silk Road Petroleum não respondeu ao pedido de comentário enviado por meio de seu site. A Sepehr Gostar Hamoun não pôde ser contatada pelos números de telefone listados como sendo dela.

- Mohammad Sadegh Kaveh, chefe da Kaveh Port and Marine Services, adquiriu um passaporte das Comores em 2015. Kaveh e sua família são alguns dos principais operadores do porto iraniano de Shahid Rajaee, em Bandar Abbas, que lida com grande parte do trânsito de contêineres do Irã.

Um porta-voz da Kaveh Port and Marine Services, que não é alvo de sanções, disse que Kaveh não tem passaporte das Comores e que todos os serviços da empresa estão dentro das leis iranianas e internacionais. Ao ser perguntado por que informações de Kaveh aparecem no banco de dados de passaportes das Comores, o porta-voz disse que a informação era "tendenciosa" e que era possível que outra pessoa estivesse usando o nome de Kaveh.

- Hossein Mokhtari Zanjani, uma figura influente no setor de energia do Irã e um advogado que lida com disputas domésticas e internacionais, adquiriu passaporte das Comores em 2013. Zanjani não pôde ser contatado para comentários.

Como a Reuters noticiou no ano passado, outra pessoa que comprou passaporte das Comores foi Mohammad Zarrab, um negociante de ouro que possui tanto cidadania turca quanto iraniana. Ele foi indiciado em 2016 por um tribunal americano pelo uso do sistema financeiro americano para realização de transações no valor de centenas de milhões de dólares em prol do Irã. Seu irmão, Reza Zarrab, se declarou culpado de acusações semelhantes e foi a principal testemunha do governo americano no julgamento de um banqueiro turco também acusado de burlar as sanções.

O paradeiro de Mohammad Zarrab é desconhecido. Seu advogado, que disse desconhecer um país chamado Ilhas Comores, disse que tentaria obter uma resposta de Zarrab, mas não a forneceu para a reportagem.

Mudança de rumo

No início de 2016, as Ilhas Comores adotaram uma política externa diferente, cortando os laços com Teerã e passando a apoiar a Arábia Saudita e outros países do Golfo adversários do Irã. Em maio daquele ano, um novo governo liderado por Azali Assoumani chegou ao poder nas Comores e deu continuidade à nova política.

Sob Assoumani, uma comissão parlamentar de inquérito foi estabelecida em 2017 de investigar o programa de fornecimento de cidadania para os bidunes dos Emirados Árabes e do Kuait. Foram examinadas as alegações por alguns políticos das ilhas de que o sistema foi implantado de forma imprópria e minado pela corrupção, com passaportes sendo vendidos além do plano original.

Como apontou a investigação, em um relatório publicado no início de 2018, os Emirados Árabes Unidos informaram às autoridades das Comores no início de 2013 que centenas de passaportes foram vendidos para estrangeiros fora do programa para os bidunes.

A questão surgiu depois que os serviços de segurança dos Emirados Árabes Unidos começaram a identificar pessoas que não eram nem comorenses e nem bidunes viajando ao país do Golfo com passaporte comorense, disse à Reuters uma fonte ligada à investigação nas Comores. Muitos eram iranianos, disse a fonte. Os Emirados Árabes Unidos não responderam aos pedidos de comentários.

Uma fonte de segurança nas Comores disse que os serviços de inteligência comorenses receberam relatos de pessoas com passaporte de Comores sendo mortas em campos de batalha no Iraque, Síria e Somália nos últimos anos. A fonte disse que era um indício de quão amplamente os passaportes das Comores estavam sendo vendidos.

A escala das vendas, que chegou a centenas de passaportes, começou a preocupar diplomatas internacionais que monitoram o arquipélago minúsculo. Um funcionário do Departamento de Estado dos Estados Unidos para a região, que está familiarizado com o programa de passaportes, disse à Reuters: "Acreditamos que as Comores não realizaram nenhuma checagem das pessoas que receberam seus passaportes".

O governo das Ilhas Comores não respondeu aos pedidos de comentários.

Os Estados Unidos agora impõem checagens mais rígidas de viajantes das Comores, disse o diplomata americano. Ele acrescentou que as autoridades francesas também estão preocupadas, pois milhares de comorenses residem na França e há viagens relativamente regulares entre os dois países. Um porta-voz do Ministério das Relações Exteriores francês disse estar ciente da venda de cidadania comorense, mas não podia comentar a respeito.

A venda de passaportes das Comores não só representa um risco de segurança ao Ocidente, como também contribuiu menos do que o esperado para a economia da nação.

Segundo o relatório parlamentar, pelo menos US$ 100 milhões de receita das vendas de passaportes não foram recebidos pelo governo e desapareceram. O ministro das Relações Exteriores, Souef Mohamed El Amine, disse à Reuters: "Há dinheiro que nunca chegou ao Tesouro. Precisamos retomar o dinheiro das pessoas que lucraram, inclusive dos estrangeiros".

O governo não disse para onde acredita que o dinheiro tenha ido.

Prédio da sede do grupo Semlex, em Bruxelas, na Bélgica - Yves Herman/Reuters - Yves Herman/Reuters
Prédio da sede do grupo Semlex, em Bruxelas, na Bélgica
Imagem: Yves Herman/Reuters

Batida belga

Os passaportes emitidos pelas Ilhas Comores foram produzidos por uma empresa belga chamada Semlex, que fornece documentos de identidade para vários países africanos. Em janeiro, a polícia belga realizou uma batida nos escritórios da Semlex em Bruxelas e na casa de seu presidente-executivo, Albert Karaziwan, em ligação à investigação do fornecimento pela Semlex de passaportes para a República Democrática do Congo.

A investigação ocorreu após uma reportagem da Reuters, em abril do ano passado, sobre passaportes do Congo. A reportagem mostrou como o governo do Congo estava vendendo novos passaportes biométricos para seus cidadãos pobres por US$ 180 (cerca de R$ 705) cada um e que grande parte do dinheiro arrecadado ia para uma empresa nos Emirados Árabes de propriedade de um parente do presidente.

Em maio, agentes da lei comorenses realizaram uma batida nos escritórios da Semlex nas Comores, como parte de sua investigação da venda de passaportes.

François Koning, um advogado que representa a Semlex e Karaziwan, disse que não comentaria para esta reportagem e alegou, como fez para uma reportagem anterior da Reuters relacionado à Semlex, que terceiros não identificados estavam manipulando a Reuters visando prejudicar Karaziwan e sua empresa.

Koning disse: "A Semlex Europe não tem nenhum papel na decisão de emissão de passaportes. Essa é uma prerrogativa exclusiva das autoridades das Comores que são as únicas representantes autorizadas a fazê-lo". Ele acrescentou que a Semlex "não é nem responsável e nem culpada pelas ações ou atos" alegados no relatório parlamentar comorense sobre a venda de passaportes, "supondo que tenham ocorrido".

Alguns passaportes das Comores foram vendidos por uma empresa com sede em Dubai chamada Lica International Consulting, segundo um acordo entre a Lica e as Ilhas Comores analisado pela Reuters. O representante da Lica em Dubai é um francês chamado Cedric Fevre, um associado de Karaziwan. Fevre e a Lica não responderam aos pedidos de comentários. Henri Nader Zoleyn, um advogado que representa Fevre, disse que este não está ciente de quaisquer atividades em relação ao esquema de cidadania das Comores e que seu cliente não lhe consultou sobre o assunto.

Em seu site, a Lica cita como parceira uma empresa com sede em Dubai chamada Bayat Group, que é dirigida por Sam Bayat Makou, um iraniano. Segundo seu site, o Bayat Group é especializado em fornecer cidadania de lugares como as Comores, Malta e São Cristóvão e Névis, no Caribe.

O próprio Makou adquiriu passaporte comorense em julho de 2013. Esse passaporte está entre os cancelados pelo governo das Comores neste ano. Makou disse que iranianos adquiriram passaportes das Comores porque "os comorenses contam com maior isenção de vistos que os iranianos" para muitos países, particularmente no Extremo Oriente. Ele disse que sua empresa fez alguns trabalhos com a Lica, que ele disse ser licenciada pelo governo comorense para venda de passaportes comorenses fora do programa para os bidunes.

Após conversas em maio com autoridades americanas, as Ilhas Comores se comprometeram a compartilhar informação sobre a emissão de passaportes com as agências americanas.

Um alto funcionário do Departamento de Estado americano na Europa disse à Reuters: "Nós esperamos ansiosamente pelo trabalho com o governo das Comores e de outras nações envolvidas" para entender as atividades que a venda de passaportes, além do esquema dos bidunes, "podem ter facilitado".

No mês passado, o ministro do Interior das Comores, Mohamed Daoudou, disse à mídia local que o escândalo da venda de passaportes das Comores se transformou em um problema internacional. "É uma questão de terrorismo", ele disse. "Não é apenas uma questão envolvendo muito dinheiro, mas também de segurança em um nível internacional."