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Mãe e filha fogem da Venezuela e caminham por milhares de quilômetros até o Peru

01.set.2018 - Angelis penteia o cabelo da mãe, Sandra Cadiz, ao fazer uma pausa durante caminhada pelo Páramo de Berlim, perto de Bucaramanga, na Colômbia - Ariana Cubillos/AP
01.set.2018 - Angelis penteia o cabelo da mãe, Sandra Cadiz, ao fazer uma pausa durante caminhada pelo Páramo de Berlim, perto de Bucaramanga, na Colômbia Imagem: Ariana Cubillos/AP

Christine Armario

Da AP, na Colômbia

18/10/2018 20h01

Ao anoitecer, Sandra Cádiz envolveu sua filha em um cobertor e rezou para que um carro passasse e a ajudasse a atravessar a fria montanha conhecida como "a geladeira".

Angelis, de dez anos de idade, já tinha usado quase todas as roupas que trouxe para percorrer 4,3 mil quilômetros em quatro países: dois pares de leggings, várias camisas e uma jaqueta leve. No entanto, as roupas pouco ajudaram a proteger a menina do vento gelado.

Mãe e filha deixaram a Venezuela a pé, juntando-se a mais de 650 migrantes que saem da mesma forma diariamente do país, sem poder comprar passagens de avião ou ônibus. Cádiz sabia que nem todos sobrevivem à rota perigosa, que passa por fronteiras e terras implacáveis. Mas ela achava que, se permanecesse na Venezuela, não seria capaz de alimentar sua filha, que, segundo um médico, estava desnutrida.

Cádiz tinha menos de seis dólares escondidos em seu sutiã, tudo o que restava de suas economias na vida. Uma hora se passou sem que ninguém as pegasse. Duas horas, depois três, e a temperatura continuou baixando, tanto que ela se sentiu congelando. Apenas uma mulher parou em uma frágil caminhonete da Toyota, mas ela queria US$ 12 para levar as duas, valor que a venezuelana não tinha.

Depois de cinco horas, Cádiz e sua filha fecharam os olhos e se prepararam para passar uma longa noite em um posto de gasolina. Cádiz, de 51 anos, deixou para trás uma filha mais velha grávida e o único mundo que conhecia. Agora, ela estava aterrorizada em frente a uma vasta extensão de terra congelada onde muitos imigrantes morrem.

Silenciosamente, ele começou a chorar.

02.set.2018 - Sandra Cadiz e sua filha Angelis seguram cartaz pedindo carona na estrada de Girón, na Colômbia - Ariana Cubillos/AP - Ariana Cubillos/AP
02.set.2018 - Sandra Cadiz e sua filha Angelis seguram cartaz pedindo carona na estrada de Girón, na Colômbia
Imagem: Ariana Cubillos/AP

Em um dos maiores movimentos migratórios mundiais na atualidade, mais de 1,9 milhão de pessoas deixaram a pobreza, a fome, o crime e a hiperinflação na Venezuela desde 2015. É um fluxo comparável ao do Oriente Médio e de refugiados africanos tentando alcançar a Europa. O governo do presidente Nicolás Maduro nega que haja um êxodo em massa e denunciou uma campanha da imprensa contra ele, enquanto seus compatriotas lotam parques públicos e refúgios na América do Sul.

O custo humano da emigração venezuelana é quase invisível, já que poucos são os mortos e desaparecidos. Dados da ONU mostram que apenas duas dúzias de migrantes morreram ou desapareceram ao longo das rotas que utilizam. No entanto, informações compiladas pela Associated Press, entre outras instituições, mostram que pelo menos 235 venezuelanos foram reportados como desaparecidos na Colômbia, Peru e Equador nos últimos dois anos.

Outros 334 venezuelanos na Colômbia morreram, assassinados ou em acidentes, e há um número indeterminado de pessoas que podem ter se afogado no Caribe.

Cerca de 2.841 pessoas morreram na Colômbia devido à doenças como malária e desnutrição. Embora seja difícil saber exatamente o quanto a migração influenciou. Carlos Valdés, chefe dos serviços forenses da Colômbia, disse que muitos chegaram ao país enfraquecidos após o êxodo.

"Eles não suportam a dura viagem, porque são muito longas", disse ele. "E eles não comem e morrem."

Cádiz levou uma vida cheia de dificuldades e estava determinada a não ser outra vítima. Filha de uma dona de casa e de um funcionário de um cemitério, engravidou aos 15 anos e deixou a escola para trabalhar e cuidar da filha. Um de seus maridos morreu durante um assalto e outro em um acidente de moto. O mais velho de seus quatro filhos morreu aos 25 anos, assassinado a tiros por pessoas desconhecidas.

Quando a economia dessa nação rica em petróleo floresceu, ela vendeu doces, cigarros e créditos para telefones celulares em uma pequena barraca para poder levar comida para sua casa. Quando um carismático socialista chamado Hugo Chávez se tornou presidente em 1999, ela também começou a vender bandeiras e chapéus da Venezuela.

Nos primeiros anos do governo de Chávez, ela conseguiu comprar frango, açúcar, leite e até maionese Kraft. Quando conseguiu um lugar em um conselho local, o governo concedeu a ela um apartamento de dois quartos, onde se maravilhou com a água limpa que saía da torneira.

Seu fervor revolucionário não ecoou em sua irmã mais velha, que se juntou a uma das primeiras ondas de venezuelanos que partiram após a consolidação do socialismo em seu país.

Antes de sair, sua irmã lhe disse: "Pobre garota, continue acreditando em seu chavismo".

Cádiz acha difícil encontrar o momento específico em que perdeu a fé na revolução, talvez porque foram muitos.

Com a deterioração da economia, ficou mais difícil conseguir comida. Cádiz e sua filha frequentemente dormiam na porta dos supermercados para pegar o que conseguiam assim que as portas abriam pela manhã.

Quando a nora de Cádiz sofreu uma infecção urinária, elas não conseguiram encontrar um antibiótico. A bebê contraiu uma irritação causada pela fralda porque não tinha dinheiro para comprar fraldas descartáveis ou um sabão bom o suficiente para lavar o pano que usava. Cádiz temia que qualquer doença pudesse causar uma calamidade.

"Vá embora ou sua filha vai morrer", disse Cadiz ao filho.

Eles foram ao Peru este ano, percorrendo o caminho a pé da Colômbia.

Enquanto isso, na Venezuela, os clientes não tinham mais dinheiro para comprar no pequeno comércio de Cádiz e a mulher achava difícil alimentar Angelis, que estava pelo menos cinco quilos abaixo do que seria seu peso normal. Ela escreveu várias vezes aos ministros do governo implorando ajuda para uma mãe solteira. Ela começava suas cartas com "uma saudação revolucionária". Eles nunca responderam a ela.

Quando Maduro apareceu na televisão em agosto para anunciar um bônus especial para ajudar os venezuelanos com a transição para uma nova moeda com cinco zeros a menos, Cádiz viu uma oportunidade. O dinheiro foi suficiente para comprar duas passagens para a fronteira com a Colômbia.

Naquela noite, ela comentou a ideia com Angelis. Elas poderiam gastar o dinheiro em coisas como um par de sapatos para substituir os antigos que já tinham um buraco. Ou  poderiam tentar encontrar seu irmão no Peru.

Meia dúzia de amigos de Angelis já havia partido. Ela sentia falta de coisas como iogurte e sorvete, e viu fotos do que seu irmão e sua família estavam comendo no Peru.

"Vamos deixar o país", disse Angelis. "Vou sair com meus sapatos furados."

05.set.2018 - Angelis tira foto de sua mãe na fronteira da Colômbia com o Equador - Ariana Cubillos/AP - Ariana Cubillos/AP
05.set.2018 - Angelis tira foto de sua mãe na fronteira da Colômbia com o Equador
Imagem: Ariana Cubillos/AP

A viagem da Venezuela geralmente começa em uma das centenas de trilhas ilegais que cruzam a fronteira com a Colômbia, já que muitos venezuelanos não têm passaporte e não podem passar legalmente para o país vizinho.

Essas trilhas são organizadas por indivíduos armados que cobram US$ 10 por migrante para permitir que eles atravessem, e muitas vezes roubam ou agridem aqueles que não podem pagar. Três dias antes de Cádis e Angelis partirem, a polícia encontrou o corpo de um homem de 44 anos que havia recebido cinco tiros.

Os migrantes então atravessam o rio Táchira, cujas correntes às vezes são fortes o suficiente para arrastar uma pessoa.

Cádiz tinha um passaporte, mas Angelis não. Elas tentavam atravessar com um passaporte e um documento manuscrito certificando que o pai da garota havia morrido. Ela se despediu de sua filha mais velha, que a acusou de abandoná-la e pegou um ônibus para a fronteira cheia de dúvidas.

Na fronteira, Angelis e sua mãe foram separados pela maré humana. Cádiz finalmente viu a garota do outro lado. A menininha havia se misturado a um grupo de crianças que cruzaram sem precisar apresentar um passaporte.

Eles passaram a primeira noite na Colômbia no terminal de ônibus em Cúcuta, onde assistiram horrorizadas quando um colombiano perseguiu um venezuelano com um facão. No dia seguinte, partiram a pé para a montanha.

Até agora, neste ano, foi relatado o desaparecimento de 142 venezuelanos na Colômbia, em comparação com 85 no ano anterior, de acordo com o escritório de serviços forenses colombianos. Grupos do Facebook estão cheios de pedidos de venezuelanos que buscam informações sobre amigos e familiares que começaram a jornada a pé, mas nunca mais mandaram notícias.

"Não me resta escolha a não ser publicar neste grupo para ver se consigo obter alguma informação", disse uma mulher recentemente, que, junto com o texto, publicou a foto de um jovem que cruzou a fronteira ilegalmente. "Seus parentes estão desesperados porque não sabem nada dele".

O número de mortos está aumentando. Somente em Cúcuta há 37 cadáveres que não foram identificados e que as autoridades acreditam ser de venezuelanos. Valdés, chefe do serviço de medicina forense, disse que os investigadores geralmente conseguem reunir informações suficientes para determinar se são venezuelanos, mas que, sem documentos ou amigos, é muito difícil saber o nome deles.

"Quando morrem, não sabemos quem é a pessoa", disse Valdés.

05.set.2018 - Sandra Cadiz ouve uma mensagem de voz de seu durante viagem de ônibus de Cali para Ipiales, na Colômbia - Ariana Cubillos/AP - Ariana Cubillos/AP
05.set.2018 - Sandra Cadiz ouve uma mensagem de voz de seu durante viagem de ônibus de Cali para Ipiales, na Colômbia
Imagem: Ariana Cubillos/AP

À medida que a meia-noite se aproximava, Cádiz encostou a bochecha na cabeça da filha e fechou os olhos, mas dormir no estacionamento gelado de um posto de combustíveis cercada por estranhos era quase impossível.

Na manhã seguinte, a maioria dos migrantes esperava para pegar carona em vez de caminhar, com medo de ficar encalhado no solitário planalto da montanha. Mas Cádiz não queria passar mais uma noite lá. Assim que o sol nasceu, ela partiu com Angelis e outro migrante.

Depois de alguns quilômetros, os pés do homem começaram a empolar. Ele tirou os sapatos, rasgou o plástico de uma garrafa de refrigerante e rasgou uma camiseta para fazer um par de chinelos improvisados. Enquanto caminhavam, o som do plástico rangendo contra o concreto ecoou pela paisagem árida.

Angelis apontou o polegar para os caminhões que passavam. Eles eram facilmente identificados como venezuelanos por causa de suas mochilas tricolores, entregues em massa pelo governo socialista para crianças de escolas públicas. Famílias em SUVs, fazendeiros e caminhoneiros com cargas vazias passaram por eles.

"Eles não param", suspirou Angelis.

Ao longo do estreito acostamento da estrada estavam vestígios dos migrantes que vieram antes: tênis com buracos nas solas, uma mala preta rasgada e sem rodas, e uma parede de pedra com pichações com nomes de pessoas e lugares.

Cinco horas depois, elas largaram as malas no chão de outro posto de gasolina. Fazia três dias desde que começaram sua jornada e mal haviam percorrido um quinto da estrada para o Peru. Agora tinham de atravessar a parte mais fria da montanha.

O planalto, conhecido na Colômbia como Páramo de Berlim, é um dos trechos mais temidos da rota, onde as temperaturas podem chegar a -10Cº. Cádiz e Angelis ouviram inúmeras histórias de migrantes mortos lá. Em algumas histórias, mãe e filha morreram congeladas ao adormecer. Em outros, famílias inteiras.

Anny Uribe, que administra um abrigo para os migrantes, disse que ouviu relatos em primeira mão de pelo menos 17 pessoas que morreram no deserto. Um coordenador regional da Cruz Vermelha disse que eles não têm os cadáveres ou evidência de qualquer tipo de que tenham morrido. Mas as autoridades dizem que é provável que os migrantes não reportem as mortes devido ao medo de pedir ajuda depois de entrar ilegalmente no país.

O migrante Isaía Alberto Muñoz, 34, diz que viu uma família cavando um poço e chorando ao longo da estrada, enterrando uma pessoa envolta em um cobertor branco, com flores vermelhas. Seu grupo decidiu continuar andando.

"Nós não pudemos parar. Nós não podíamos aguentar mais frio", disse Muñoz.

Cádiz e Angelis estavam andando por uma rota quando foram vistas por Alba Camacho e um amigo. No começo, eles passaram direto. Eles tinham espaço para duas pessoas em seu carro e Angelis e sua mãe estavam acompanhados por outros três migrantes.

"E a mulher e a menina?", perguntou o amigo.

Camacho, uma professora de 27 anos, achou que nenhum dos migrantes conseguira deixar o local antes do cair da noite, especialmente a menina. Eles voltaram para pegar Angelis e Cádiz.

Camacho cobriu Angelis com seu próprio casaco azul e comprou-lhes empanadas. Eles cruzaram o topo da montanha dentro de uma van aquecida. Quando chegaram a Bucaramanga, Camacho e seu amigo as levaram para casa, em vez de deixá-las em um parque público, onde há centenas de venezuelanos sem teto.

Naquela noite, enrolada na sala de estar da casa de uma estranha, Cádiz ouviu Angelis falando enquanto dormia.

"Mãe, eu não quero mais andar!", disse a garota.

05.set.2018 - Sandra Cadiz e Angelis aguardam em fila para passar pela imigração em Ipiales, na Colômbia - Ariana Cubillos/AP - Ariana Cubillos/AP
05.set.2018 - Sandra Cadiz e Angelis aguardam em fila para passar pela imigração em Ipiales, na Colômbia
Imagem: Ariana Cubillos/AP

De volta à estrada na manhã seguinte, Cádiz perdeu o senso de direção. Ela só sabia o que o filho havia lhe dito: pegue a rota do Sol para Cali e Equador. Ela se aproximou de um idoso e perguntou: "o caminho para Cali?", mas recebeu uma resposta confusa. Era como estar em uma rua de Nova York e perguntar como chegar a Cleveland.

Elas decidiram seguir em uma certa direção e depois de um quilômetro pararam para escrever algo em uma caixa de molho de tomate Zev. Angelis, cansada e frustrada, contou à mãe o que ela deveria escrever.

"Motorista abençoado, por favor nos ajude com uma carona", escreveu Cadiz, que soletrou de maneira errada a palavra "abençoado".

Angelis deu sinal para todos os veículos que passavam. Apenas um ciclista parou e deu a elas o equivalente a um dólar em pesos colombianos. Duas horas e cinco quilômetros depois, Angelis queria parar de andar.

"Você não quer ir para a casa?", perguntou a mãe.

"Que casa?", respondeu a menina.

Relutantemente, Angelis continuou andando. Depois de mais um quilômetro e meio, com a ajuda de um policial, conseguiram alguém para levá-las a Lebrija, a capital do abacaxi da Colômbia, onde o aroma de frutas enchia o ar.

Pararam em outro posto de gasolina onde uma venezuelana com o marido e um filho de nove anos tentavam desesperadamente acalmar um bebê febril à sombra de uma árvore.

Cádiz e sua filha também buscaram proteção contra o calor sufocante quando um homem de chapéu preto lhes deu 50 mil pesos colombianos (cerca de 16 dólares) e lhes disse: "Espero que eles não votem em Maduro novamente."

Elas continuaram andando e dando sinal com o dedo, mas estavam avançando em um ritmo muito lento. Na noite seguinte, mal haviam percorrido um quarto do caminho entre a Colômbia e o Equador, o próximo país que precisavam atravessar. Quando o sol começou a se por em um lugar conhecido apenas como "quilômetro 17", Angelis e sua mãe começaram a discutir.

"O que é a ruta do Sol?", perguntou a garota.

"Ai Angelis", respondeu a mãe. "Eu não sei".

Eles montaram uma pequena cama com cobertores sob um telhado de zinco de uma oficina mecânica. Eles se moviam constantemente à noite para não serem molhadas por uma tempestade violenta.

"Estamos presas", disse Cádiz a seu filho em uma mensagem falada no WhatsApp. Mas o telefone não tinha sinal, então o pedido de ajuda não chegou a lugar nenhum.

Como quase todas as noites da viagem, Cádiz chorou. Naquela noite, Angelis também chorou.

03.set.2018 - Sandra Cadiz agradece o funcionário de um posto de combustíveis em Peroles, na Colômbia - Ariana Cubillos/AP - Ariana Cubillos/AP
03.set.2018 - Sandra Cadiz agradece o funcionário de um posto de combustíveis em Peroles, na Colômbia
Imagem: Ariana Cubillos/AP

A estrada que levava à rota do Sol era longa e deserta. Mas Cádiz encontrou um pequeno café e um motorista de caminhão que, apesar do medo de ser multado pela polícia pelo transporte de migrantes, as levou para a pequena cidade de San Pedro de la Paz. Foi lá que Cádiz decidiu mudar de estratégia. Ela havia recolhido 250 mil pesos (cerca de US$ 82) que recebeu de esmola de colombianos e optou por viajar de ônibus.

Naquele dia, Cadiz e sua filha pegaram três ônibus, às vezes com uma única passagem, desde que a menina sentasse no colo de sua mãe. Quando chegaram a Cali, estavam dormindo.

"Cali! Terminal de Cali!", gritou o motorista, tentando acordá-las. Quando finalmente saíram, suas malas eram as únicas que restavam.

O terminal de ônibus em Cali estava cheio de venezuelanos que dormiam do lado de fora, em pedaços de papelão, em uma área cheia de criminosos. Cádiz imediatamente pegou duas passagens para o Equador.

O governo equatoriano começou a solicitar passaportes, mas um tribunal suspendeu temporariamente a medida. Cientes disso, os passageiros estavam ansiosos para chegar antes que a norma fosse implementada.

Crianças nervosas choraram durante as 12 horas da jornada. Na fronteira, Cádiz e Angelis dirigiram-se ansiosamente à fila para as famílias.

Enquanto esperavam para serem atendidas, um homem com um maço de notas venezuelanas disse que comprava tudo o que tinham. Cádiz pegou o que restou e o homem contou o dinheiro e ofereceu-lhe 50 centavos.

Ela recusou. Não suportava receber tão pouco por tudo que ganhara.

Enquanto a mãe passou horas na fila, Angelis dormiu no chão, com a cabeça apoiada em algumas sacolas. Quando Cádiz foi finalmente recebida por um agente de imigração, ela lhe entregou o passaporte, a certidão de óbito do marido e o cartão de identidade da filha. O agente observou o cartão, devolveu-o sem uma palavra e assinou um documento especial que permitia que Angelis entrasse no Equador sem passaporte.

O alívio de Cádiz era palpável e ela e sua filha posaram para fotos sob uma placa que dizia "Obrigado por visitar a República do Equador". Minutos depois, no entanto, elas perceberam que, no meio da comoção ao cruzar a fronteira, haviam perdido a identificação de Angelis.

Era a única identificação com foto que eles tinham da garota e eles ainda tinham que atravessar outra fronteira a 2.073 quilômetros.

08.set.2018 - Sandra Cadiz se reúne com seu filho Leonardo e sua filha Daniela Gomez, ao chegar na estação de ônibus de Lima, no Peru - Ariana Cubillos/AP - Ariana Cubillos/AP
08.set.2018 - Sandra Cadiz se reúne com seu filho Leonardo e sua filha Daniela Gomez, ao chegar na estação de ônibus de Lima, no Peru
Imagem: Ariana Cubillos/AP

No Equador, Cádiz e Angelis se dirigiram a uma tenda da Cruz Vermelha onde havia dezenas de migrantes. Elas ficaram sabendo que naquela noite um ônibus estava partindo para a fronteira com o Peru. Era um veículo que o governo equatoriano colocou à disposição dos migrantes, sem nenhum custo, em um aparente esforço para facilitar sua saída do país.

Cádiz inscreveu seus nomes para a longa lista de venezuelanos que esperavam conseguir um assento. Tudo foi organizado para que as mulheres e as crianças subissem primeiro, o que gerou algumas tensões com um grupo de homens.

"Há pessoas que esperaram por seis dias!", gritou um homem que disse estar andando no Equador havia 18 dias.

"Há também pessoas que têm prioridade", respondeu outro.

Vinte horas depois, mãe e filha saíram do ônibus famintas, com náuseas causadas por indigestão. Um médico da Cruz Vermelha diagnosticou a gastroenterite de Angelis e deu-lhe um pouco de Bactrim.

Oito dias depois de deixar Caracas, Angelis e sua mãe chegaram à fronteira final. Cadiz não sabia o que diriam os agentes de imigração peruanos se percebessem que Angelis não possuía um único documento de identificação com foto, muito menos um passaporte. Mas tendo chegado até aqui, ela confiou que Deus a guiaria.

Na manhã seguinte, elas caminharam até o posto de controle, que ficava a vários quilômetros de distância. Milhares de imigrantes esperaram, mas novamente as colocaram em uma fila especial para famílias com crianças. Quando chegaram à frente da fila uma hora depois, Cádiz retirou seus documentos.

"Primeira vez que você entra no Peru?", perguntou um agente.

"Sim", respondeu Cádiz.

O agente disse a Cádiz para apoiar seus dedos em um scanner digital. Angelis, impaciente, mostrou-lhe como fazê-lo. Quando chegou sua vez, a garota sorriu de orelha a orelha para a câmera.

"Acalme-se", disse o agente friamente. "Não sorria."

Angelis apertou os lábios.

A bordo de um ônibus de dois andares cheio de venezuelanos que viajariam por 18 horas até Lima, Cádis e sua filha desfrutaram de dois hambúrgueres e uma bebida peruana. Em uma parada, Cádiz viu sua filha olhando para uma barraca que vendia frango frito e refrigerantes, e comprou os dois. Quando chegaram a Lima, não tinham um centavo nos bolsos.

"Eu vim por um milagre de Deus", diz Cádiz.

O irmão mais velho de Angelis, Leonardo Araujo, sua mulher e sua filha de um ano as receberam com um abraço. Cadiz percebeu que eles haviam ganhado peso e que Angelis admirava os sapatos prateados do bebê.

Elas pegaram suas malas para uma última caminhada por Lima até sua nova casa. Mas enquanto um longo pesadelo acabou, havia outras dificuldades pela frente.

08.set.2018 - Sandra Cadiz abraça sua filha Daniela Gomez na chegada na estação de ônibus em Lima, no Peru - Ariana Cubillos/AP - Ariana Cubillos/AP
08.set.2018 - Sandra Cadiz abraça sua filha Daniela Gomez na chegada na estação de ônibus em Lima, no Peru
Imagem: Ariana Cubillos/AP

Um mês depois de sua chegada ao Peru, Angelis e sua mãe estão novamente sem um teto para viver. Elas não podiam pagar mais aluguel, então o dono do imóvel as expulsou do pequeno quarto onde moravam com o filho de Cádis.

Mãe e filha estão agora em um refúgio cheio de venezuelanos. Elas vendem máquinas de barbear e outros itens na rua, na esperança de arrecadar dinheiro para alugar um quarto.

Em um momento de desespero, Cádiz se perguntou se ela e Angelis não estariam melhores na Venezuela, mas alguns amigos disseram que as coisas estavam piores.

De qualquer forma, há algumas indicações que lhes dão esperança de que poderiam ter uma vida melhor no Peru: Angelis já ganhou quase 5 quilos.