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O que foi o Pacto das Catacumbas, que mudou os rumos da Igreja Católica?

Catacumbas de Santa Domitila, em Roma - AFP
Catacumbas de Santa Domitila, em Roma Imagem: AFP

Edison Veiga

Colaboração para o UOL, em Milão

16/11/2018 04h00

Mais de 50 anos atrás, a Igreja Católica tomou um rumo de mudança. Durante o papado de João 23, o 2º Concílio do Vaticano, realizado entre 1962 e 1965, buscou modernizar o catolicismo, trazendo para o debate questões do século 20.

Em 16 de novembro de 1965, com o concílio já prestes a ser concluído e já sob a liderança do papa Paulo 6º, 42 sacerdotes assinaram um acordo: o Pacto da Igreja Servidora e Pobre, mais conhecido como Pacto das Catacumbas.

"Foi um texto com 13 pontos em que os bispos signatários assumiam outra atitude junto aos empobrecidos do planeta", afirma ao UOL o teólogo e filósofo Fernando Altemeyer Júnior, professor de ciências da religião da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo).

"O documento foi assinado ao final de uma missa solene das catacumbas de Santa Domitila, em Roma”, relata Altemeyer Júnior. "Os 42 bispos se comprometeram a levar uma vida de pobreza e assumiram um compromisso concreto com as dores e as esperanças dos pobres do mundo inteiro. Este gesto continua sendo até hoje um guia para todas as igrejas cristãs."

Conforme explica o teólogo, no documento, os signatários "rejeitam todos os símbolos ou privilégios do poder, se colocam a serviço dos pobres e se comprometem a transformar gestos de beneficência em obras sociais e justiça".

"Comprometem-se com a colegialidade episcopal, o modo evangélico de ser igreja - povo de Deus, a abertura ao mundo e a acolhida fraterna aos povos crucificados", afirma.

Depois da reunião, outros 500 bispos do mundo aderiram à proposta. "Eles se comprometeram a alterar sua posição de príncipes para uma vida sóbria ao lado do povo", define o professor.

"Foi a expressão pública da caminhada e dos compromissos do grupo da Igreja dos Pobres, formado desde a primeira sessão do 2º Concílio do Vaticano", afirma o padre José Oscar Beozzo, ex-presidente da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina, em seu livro "Pacto das Catacumbas", publicado pela editora Paulinas.

Dom Helder - Gil Passarelli/Folhapress - Gil Passarelli/Folhapress
Dom Hélder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife
Imagem: Gil Passarelli/Folhapress
Cinco brasileiros assinaram o acordo

Entre os primeiros signatários do pacto, há cinco nomes brasileiros: dom João Batista da Mota e Albuquerque (1909-1984), então arcebispo de Vitória, dom Francisco Austregesilo de Mesquita Filho (1924-2006), bispo de Afogados de Ingazeira (PE), dom José Alberto Lopes de Castro Pinto (1914-2007), bispo auxiliar do Rio, dom Henrique Hector Golland Trindade (1897-1974), bispo de Botucatu (SP), e dom Antônio Batista Fragoso (1920-2006), então bispo de Crateús (CE).

Grande defensor dos direitos humanos e um dos fundadores da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), dom Helder Câmara (1909-1999) foi um dos mentores do texto. "Mas não pôde estar no dia do encontro na catacumba por suas atribuições no concílio", relata Altemeyer. "Ele teve reunião no mesmo horário na Cúria Romana."

O Pacto das Catacumbas influenciou os rumos da Igreja Católica na América Latina, não só na luta pela inclusão social como na resistência aos governos ditatoriais. "Certamente o documento foi um dos inspiradores da corrente da Teologia da Libertação", diz o teólogo.

A Teologia da Libertação, criada no fim dos anos 1960, é uma corrente teológica voltada para o contexto sociopolítico. Ela parte da premissa de que o Evangelho exige uma opção preferencial pelos pobres.

"Em 1968, há o encontro do episcopado latino-americano, a Conferência de Medellín, na Colômbia. Ali ocorreu o nascimento de uma igreja adulta na América Latina, não mais dependente e caudatária da colonização e das metrópoles europeias", continua o professor.

bispos - Andrew Medichini/AP - Andrew Medichini/AP
Bispos participam de missa no 50º aniversário do 2º Concílio do Vaticano, em 2012
Imagem: Andrew Medichini/AP
Regimes militares perseguiram signatários

Todos os sacerdotes signatários do Pacto das Catacumbas originários de países sob repressão foram, em maior ou menor grau, perseguidos pelos regimes militares.

O argentino dom Enrique Angelelli (1923-1976) foi morto por agentes da ditadura militar em um acidente automobilístico simulado --conforme ficou provado em investigação oficial realizada em 2010.

Angelelli, inclusive, está em processo para se tornar santo. Em 14 de maio deste ano, a Comissão para as Causas dos Santos iniciou os procedimentos. No dia 9 de junho, o papa Francisco o declarou mártir.

Galerias abrangem quilômetros de extensão

O acordo chamou-se Pacto das Catacumbas pelo local onde ocorreu o encontro: as catacumbas de Santa Domitila, em Roma.

"Aquela área foi doada aos cristãos pela nobre Flávia Domitila, neta do imperador Vespasiano. "Essas catacumbas estão entre as mais extensas em Roma e abrigam uma basílica subterrânea construída no final do século 4º, durante o pontificado do papa Damaso", conta Beozzo em seu livro.

Conforme o padre, a igreja subterrânea foi dedicada aos mártires Nereu e Aquileu, "cujos túmulos estão localizados sob o altar da basílica, ao lado da tumba de Santa Petronília". "Nos seus 17 km de galerias, em quatro andares, há mais de 150 mil sepulturas escavadas nas paredes dos corredores", relata o livro.

"Encontram-se ali símbolos e afrescos que testemunham a fé profunda dos cristãos daquelas primeiras comunidades romanas e sua veneração pelos mártires ali sepultados."

Papa - Andrew Medichini/AP - Andrew Medichini/AP
Imagem: Andrew Medichini/AP
Confira trechos do pacto:

- "Procuraremos viver segundo o modo ordinário da população, no que concerne à habitação, à alimentação e aos meios de locomoção"

- "Para sempre renunciamos à aparência e à realidade da riqueza"

- "Não possuiremos nem imóveis, nem móveis, nem conta em banco"

- "Confiaremos a gestão financeira em nossa diocese a uma comissão de leigos"

- "Recusamos ser chamados com nomes que signifiquem a grandeza e o poder (Eminência, Excelência, Monsenhor...). Preferimos padre"

- "Evitaremos aquilo que pode parecer conferir privilégios"

- "Evitaremos incentivar ou lisonjear a vaidade de quem quer que seja"

- "Daremos tudo o que for necessário ao serviço apostólico e pastoral das pessoas e dos grupos laboriosos e economicamente fracos e subdesenvolvidos"

- "Procuraremos transformar as obras de 'beneficência' em obras sociais baseadas na caridade e na justiça"

- "Poremos tudo em obra para que os responsáveis pelo nosso governo e pelos nossos serviços públicos decidam e ponham em prática as leis"

- "Comprometemo-nos a partilhar, na caridade pastoral, nossa vida com nossos irmãos em Cristo"

- "Mostrar-nos-emos abertos a todos, seja qual for a sua religião"

- "Ajude-nos Deus a sermos fiéis".