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Em vez de enterrar, comer: Europa teve canibalismo como ritual funerário

Restos humanos encontrados na Europa indicam que o canibalismo era uma prática funerária Imagem: Reprodução/ Trustees of the Natural History Museum London

Colaboração para o UOL, em São Paulo

09/10/2023 04h00Atualizada em 09/10/2023 09h46

Um novo estudo trouxe evidências de canibalismo como prática funerária há cerca de 15 mil anos na Europa após análise de restos de ossos humanos com marcas de cortes, quebras e mastigação humana.

Entretanto, o estudo publicado nesta semana na Quaternary Science Reviews apontou que a prática canibal não ocorria por necessidade, mas sim como parte da cultura dos humanos naquela época, principalmente os chamados magdalenianos.

"Em vez de enterrarem seus mortos, essas pessoas os comiam", explicou Silvia Bello, do Museu de História Natural de Londres e coautora do artigo, em comunicado à imprensa.

Ela diz que foi interpretada a evidência de que o canibalismo foi praticado em múltiplas ocasiões em todo o noroeste da Europa durante um curto período de tempo, uma vez que esta prática fazia parte de um comportamento funerário difuso entre os grupos magdalenianos.

"Isso por si só [já] é interessante, porque é a evidência mais antiga do canibalismo como prática funerária", destacou.

Crânio humano encontrado na Caverna de Gough usado como taça após carne ter sido removida Imagem: Reprodução/ Trustees of the Natural History Museum London

O que aconteceu

Pesquisadores já tinham encontrado ossos roídos e crânios humanos transformados em taças na Caverna de Gough, na Inglaterra, mas esse novo artigo sugere que isso não ocorreu apenas neste local.

Concentrada no período Magdaleniano do final do Paleolítico Superior, especialistas do Museu de História Natural de Londres analisaram 59 sítios identificados que tinham restos humanos.

Pouco mais da metade estavam na atual França, mas também foram estudados sítios na Alemanha, Bélgica, Espanha, Polônia, Portugal, Reino Unido, República Tcheca e Rússia.

Dos 59 sítios, os cientistas foram capazes de interpretar os comportamentos funerários em 25 deles dos quais 13 apresentavam evidências de canibalismo, 10 de sepultamento — semelhante ao que temos hoje —, e outros dois com combinações de sepultamento e canibalismo.

Em dez sítios houve evidências de que restos humanos com marcas de mordidas, ossos cranianos com marcas de corte e outros ossos quebrados tiveram um padrão associado à extração da medula óssea em busca de nutrientes, sendo locais interpretados como casos de canibalismo.

Pesquisa descobriu que evidências do canibalismo humano estavam concentradas no noroeste da Europa durante o Paleolítico Superior Imagem: Reprodução/ William Marsh/ Natural History Museum London

Culturas diferentes

No final do período Paleolítico Superior, entre cerca de 23 mil e 14 mil anos atrás, havia duas culturas dominantes na Europa Ocidental, em grande parte distinguidas pelas ferramentas de pedra e osso que ambas fabricavam.

A cultura epigravetiana, que foi encontrada principalmente vivendo no Sul e no Leste da Europa, enterrava seus mortos com bens funerários de uma forma semelhante aos padrões modernos.

Já a cultura magdaleniana, do Noroeste europeu, era a que adotava o canibalismo como prática fúnebre. Na época, eles processavam os corpos dos seus mortos, removendo a carne do cadáver para comê-la e, eventualmente, modificar os ossos restantes para criar novos objetos.

Uma das questões levantadas para a prática era se este canibalismo era ou não motivado pela necessidade, em períodos em que a comida era escassa ou inverno prolongado e por isso os magdalenianos tivessem "ativado" o modo de sobrevivência precisando comer seus entes, ou se tratava-se apenas de um comportamento cultural.

As evidências da Caverna de Gough já sugerem que a ingestão dos corpos era uma forma mais ritualística, porque há amplas evidências de que os responsáveis estavam caçando e comendo outros animais, enquanto a preparação cuidadosa de alguns restos humanos, como as taças de crânios de caveiras e um osso gravado, mostra que isso era pensado, o que foi colocado como canibalismo.

"O fato de encontrarmos o canibalismo a ser praticado frequentemente em várias ocasiões durante um curto período de tempo, numa área bastante localizada [em locais por toda Europa Ocidental e Central até o Reino Unido], e apenas por indivíduos atribuídos à cultura Magdaleniana, significa que acreditamos que este comportamento foi amplamente praticado pelos magdalenianos e foi, portanto, um comportamento funerário em si", explicou William Marsh, autor do estudo.

Alguns dos ossos humanos encontrados na Caverna de Gough indicam que o canibalismo tinha uma função ritualística Imagem: Reprodução/ Trustees of the Natural History Museum London

Mudanças nas práticas funerárias

Com duas culturas distintas com comportamentos igualmente diferenciados, uma questão foi levantada: saber se a eventual onipresença relativa da cultura funerária no final do Paleolítico foi resultado da adoção do enterro primário como comportamento funerário pelo povo magdaleniano, ou se a população desse povo foi substituída.

A dupla de cientistas responsáveis pelo estudo então fizeram uma análise genética com os restos mortais encontrados nos sítios estudados. Isso permitiu a eles verificar se havia alguma relação entre quem praticava quais comportamentos funerários.

Logo a evidência genética já sugeriu que os dois grupos que praticavam comportamentos funerários diferentes também eram populações geneticamente distintas.

Todos os locais com evidências de canibalismo mostram que as pessoas faziam parte do grupo genético conhecido como "GoyetQ2". Enquanto onde foram localizados enterros comuns, sua população pertencia ao grupo genético "Villabruna".

Mesmo vivendo no mesmo período na Europa, quem tinha ascendência GoyetQ2 estava associada à região próxima à fronteira franco-espanhola, quanto o grupo com ascendência Villabruna habitava a região ítalo-balcânica.

"Isso implica que quando a prática de comer os mortos terminou e os enterros mais convencionais se tornaram comuns no noroeste da Europa, não foi através de uma difusão de ideias, mas sim de um povo epigravetiano que substituiu o magdaleniano", informou o comunicado do Museu de História Natural à imprensa.

Apesar das novas descobertas, ainda há dúvidas sobre essas práticas funerárias dos antigos humanos que habitaram a Europa milênios atrás. Agora, o foco de William e seus colegas será tentar descobrir se os humanos canibalizados encontrados eram parentes entre si ou se eles comiam pessoas de fora de seus grupos imediatos.

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