Europa discute obrigatoriedade do serviço militar após guerra na Ucrânia
A Europa voltou a discutir a obrigatoriedade do serviço militar em meio a temores de novos conflitos na região e da possibilidade da eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, que ameaça não proteger aliados da Otan contra a Rússia.
O que aconteceu
13 dos 50 países europeus têm hoje o serviço militar obrigatório. A discussão se espalhou por países importantes, como a Alemanha, Reino Unido e França, com o avanço russo na Ucrânia e a dificuldade dos países em atingir suas metas de alistamento voluntário.
A anexação da Crimeia à Rússia, ainda em 2014, acendeu um alerta na região. Para Luciano Muñoz, professor de Relações Internacionais do CEUB (Centro Universitário de Brasília), os países europeus passaram a perceber a Rússia como uma ameaça à segurança, o que não acontecia desde a Guerra Fria.
No mesmo ano, a Ucrânia reinstituiu o serviço militar obrigatório para homens de 18 a 26 anos. Depois da invasão, todos os adultos com até 60 anos se tornaram elegíveis para o serviço militar.
Lituânia (em 2018) e Letônia (em 2024) seguiram o exemplo ucraniano e reintroduziram o alistamento obrigatório. A Estônia, o terceiro país da região báltica, que faz fronteira com a Rússia, sempre manteve a obrigatoriedade do serviço militar para homens a partir dos 18 anos.
No caso da Lituânia, autoridades temem ser o próximo alvo da Rússia, caso o país vença a guerra na Ucrânia. A Lituânia fica entre o enclave russo Kaliningrado e Belarus, país aliado de Vladimir Putin. "Havia especulações de que a Rússia podia invadir Kaliningrado para unir o território, o que não aconteceu até agora", explicou Muñoz.
Kaliningrado é o único território russo cercado por países da União Europeia. "A partir dali, pode haver ataques nucleares atingindo toda a Europa, no limite", afirmou o professor de Relações Internacionais.
Para a professora Ana Carolina Marson, doutora em Relações Internacionais, Lituânia, Letônia e Estônia não correm tanto risco de serem invadidos. Ela explica que a Rússia enxerga a Ucrânia como parte de seu território. "No pós-segunda guerra, os países bálticos foram integrados à União Soviética como um colchão, uma zona de proteção, para que outras tropas não chegassem tão depressa em Moscou. Diferente da Ucrânia: a fundação do estado ucraniano têm laços históricos com a Rússia. Até os mitos são os mesmos".
Os países escandinavos também começaram a se movimentar a partir de 2014. Suécia e Noruega restituíram o serviço militar obrigatório e, depois da invasão à Ucrânia, Suécia e Finlândia romperam uma neutralidade histórica para se juntar à Otan, formada durante a Guerra Fria contra a União Soviética. Agora, todos os países à beira do Mar Báltico, com exceção da Rússia, são membros da Aliança Atlântica.
A professora Ana Carolina Marson ressalta que a Rússia pode arrastar o continente inteiro para um conflito se invadir um país da União Europeia. "Temos inúmeros conflitos no cenário internacional, mas em território europeu, questionando a soberania de outra nação, é impensável na conjuntura europeia".
Alemanha e Reino Unido aumentam coro a favor do alistamento obrigatório
A Alemanha, que abriu mão da retórica militarista após a 2ª Guerra, agora fala em retomar o serviço militar obrigatório, que está suspenso desde 2011. "É um debate delicado na Alemanha por causa do passado nazista", afirmou o professor Muñoz.
No Reino Unido, o primeiro-ministro Rishi Sunak diz que vai recriar o serviço militar obrigatório caso seja reeleito. É uma das principais promessas de campanha do Partido Conservador, que acredita que a proposta tem apelo popular. Pesquisas projetam uma derrota de Sunak nas eleições.
Os países também têm metas de contingente militar para os próximos anos. A Alemanha planeja sair de 182 mil para 203 mil soldados. Na França, a meta é aumentar de 240 mil para 275 mil. O Exército Britânico quer alcançar 120 mil soldados. Para Leonardo Paz, pesquisador do Núcleo de Prospecção e Inteligência Internacional da FGV, a Europa tem dificuldade de recrutar voluntariamente porque os jovens têm mais oportunidades profissionais. "Se você está na Alemanha, sua escolha não é passar fome ou servir no Exército. É servir no Exército ou ser engenheiro. É muito pouco sedutor", avalia.
Número de soldados hoje não é suficiente se houver um conflito imprevisível, explicou Leonardo. "Você precisa de centenas de milhares de reservistas com treinamento básico. Um garoto de 18 anos convocado para servir hoje não vai ser piloto de helicóptero. Ele vai cumprir coisa de burocracia para liberar o soldado mais profissional".
Países também discutem o alistamento obrigatório de mulheres. Neste ano, a Dinamarca se tornou o terceiro país da Europa a introduzir o recrutamento feminino —depois da Noruega e Suécia. O debate europeu fala em igualdade de gênero.
Para o professor Leonardo, só países nórdicos conseguem discutir o serviço obrigatório para mulheres. "Lá, há um alto grau de independência das mulheres. Idosos, por exemplo, que estatisticamente são mais cuidados pelas mulheres, não dependem dos filhos porque têm amparo de políticas sociais".
Países da Otan concordaram em aumentar gastos militares neste ano. Após décadas de cortes, os estados-membros vão dedicar US$ 380 bilhões em defesa. A Polônia lidera e vai gastar o equivalente a 4,2% do seu PIB nas forças armadas.
Muñoz diz que não é estranho imaginar que a Europa está se preparando para um conflito. "É bem razoável. A Rússia invadiu a Ucrânia com o argumento de insegurança, por exemplo".
"O que o cenário mostra é de que fato existe uma tensão surgindo no seio europeu", afirmou a professora Ana Carolina Marson. "Os países têm que seguir essa lógica e se preparar para um conflito".
A possibilidade de Trump ser eleito nos EUA também renova o debate sobre a segurança europeia, diz o professor Leonardo. "Trump diz que não tem cabimento pagar pela segurança dos outros países. No primeiro mandato, ele criticou muito os países da Otan por não cumprirem o acordo de dedicar 2% do PIB com defesa".
Tensão após período de paz
Muitos países deixaram a obrigatoriedade de lado depois da Guerra Fria, explicaram especialistas. Naquele momento, havia uma ilusão de que seria o fim de todos os conflitos. "A década de 90 foi muito otimista. O mundo acha que pode criar condições de uma paz duradoura, que os países iriam se integrar pelo comércio internacional, que haveria a aproximação dos povos e Estados", diz o professor Muñoz.
O alto custo de manter um soldado também fez países repensarem o alistamento obrigatório. "É muito caro, principalmente se o soldado decide continuar na carreira. Eles aposentam muito cedo e recebem do governo. É um custo fixo muito grande que só tende a crescer", explicou Leonardo Paz. "Também havia uma preocupação com golpes: se houver um levante, você está lidando com pessoas treinadas", acrescentou.
Alguns autores apontam 2001, com o atentando contra as Torres Gêmeas, nos EUA, como o ponto de virada da perspectiva da paz global. "Outros falam do avanço russo em anos recentes", diz Muñoz.
O que dizem líderes na região
Vivemos numa época em que a Europa já não é um continente de paz, infelizmente. A Rússia está contra a Ucrânia agora, mas isso pode ser direcionado a outros países amanhã. Já estamos vendo agressões aos países bálticos.
Volodymyr Zelensky, presidente ucraniano
Devemos estar prontos para a guerra até 2029. Temos que nos precaver para evitar que o pior aconteça. Numa emergência, precisamos de mulheres e homens jovens fortes que possam defender este país.
Boris Pistorius, ministro de Defesa da Alemanha
Não estamos imunes e, como geração pré-guerra, devemos nos preparar. Isso é uma tarefa de toda a nação. A Ucrânia ilustra brutalmente que os exércitos regulares iniciam guerra; exércitos de cidadãos os vencem.
Chefe do Exército do Reino Unido, general Patrick Sanders
Muitos já o disseram antes de mim, mas deixem-me fazê-lo a título oficial, de forma mais clara: pode haver uma guerra na Suécia. Você já assumiu a responsabilidade pela preparação da sua casa? Já pensou se tem tempo para entrar em uma organização de defesa voluntária? Se não: mexa-se.
Carl-Oskar Bohlin, ministro de Defesa da Suécia
Não nos rearmamos porque queremos a guerra. Estamos a rearmar-nos porque queremos evitá-lo.
Mette Frederiksen, primeira-ministra da Dinamarca