Trump sugere que Kamala se identifica como negra para ter vantagem política
Do UOL, em São Paulo
31/07/2024 16h40Atualizada em 31/07/2024 21h25
Donald Trump, candidato republicano à Presidência dos Estados Unidos, indicou que a vice-presidente Kamala Harris usou sua identidade negra para ter vantagens políticas. A fala foi dada durante uma entrevista à Associação Nacional de Jornalistas Negros, em Chicago.
O que aconteceu
"Não sabia que Kamala era negra", diz Trump. O republicano sugeriu que a possível candidata democrata passou a se identificar como uma pessoa negra para ter mais vantagens na política americana. "Não sabia que ela era negra, até alguns anos, quando ela passou a querer ser conhecida como negra. Porque ela era indiana a todo o tempo e de repente se tornou uma pessoa negra", disse.
Declaração foi dada após questionamento se Kamala chegou à vice-presidência com "cota". Uma das jornalistas perguntou ao ex-presidente se Kamala era uma contratação de DEI (diversidade, equidade e inclusão), como republicanos aliados a Trump tinham sugerido, o que gerou sua resposta.
Kamala tem herança negra e asiática. Seu pai é um homem negro, enquanto sua mãe era uma mulher indiana.
A Casa Branca classificou declaração como "insulto". Karine Jean-Pierre, porta-voz da Casa Branca, falou sobre o assunto durante entrevista coletiva nesta quarta-feira (31). "Como eles se identificam, isso não é direito de ninguém. É uma decisão de cada um. Só ela [Kamala Harris] pode falar sobre sua experiência. Só ela pode falar sobre como é. Ela é a única pessoa que pode fazer isso. E eu acho que é um insulto para qualquer um. Não importa se é um ex-líder, um ex-presidente. É um insulto."
Evento causou repercussão negativa. Alguns membros da Associação Nacional de Jornalistas Negros disseram que o grupo não deveria oferecer uma plataforma a Trump, que tem desprezado o trabalho de jornalistas negros, às vezes em termos pessoais. Trump também tem usado linguagem racista e desumanizadora na campanha.
Trump tenta diálogo com população negra
Trump conseguiu melhorar números entre o eleitorado negro, mesmo se mantendo expressivamente atrás nas pesquisas entre o grupo. Apesar da identificação histórica da comunidade com o Partido Democrata, Trump vinha conseguindo avançar na aceitação destes eleitores nos últimos meses, principalmente entre os mais jovens.
Figuras populares declararam voto em Trump desde a última eleição: Lil Wayne, Amber Rose, Candace Owens e Kanye West são alguns exemplos de famosos que ajudaram o candidato a melhorar desempenho entre eleitores negros.
Trump tenta conseguir votos indo a eventos da comunidade negra. Recentemente, ele esteve no Black Conservative Federation Gala, na Carolina do Sul, na 180 Church, em Michigan, e no South Bronx, em Nova York, para discursar para os eleitores do grupo e anunciar o projeto "Black Americans for Trump" — negros americanos para Trump, na tradução literal.
O empresário usou seus processos judiciais e o que ele chama de "perseguição" para atrair votos negros. De acordo com ele, seus processos criminais se parecem à discriminação histórica que os negros enfrentam nos EUA.
Em comício, Trump afirmou que os negros começaram a votar nele porque "o que está acontecendo comigo, acontece com eles". A fala carrega o contexto do embate do republicano na Justiça norte-americana - ele foi condenado por 34 crimes.
Ele joga uma cartada antipolítica. Ele fala que é de fora de sistema, algo que já se tornou meio clichê, mas que continua sendo usada dentro da política. Nesse sentido, ele se diz um excluído do sistema, uma característica que ele usa para tentar gerar identificação com o eleitor negro, esse, sim, historicamente excluído. É uma cartada que ele joga que ele consegue conquistar uma parcela desses eleitores. Mas agora ele enfrenta uma realidade diferente do que enfrentou com Biden, com quem tinha semelhanças.
Amâncio Nunes de Oliveira, doutor em Ciência Política
Kamala cresce entre eleitorado negro
Harris conta com o apoio do eleitorado negro estadunidense. Além do já histórico apoio ao Partido Democrata, agora o grupo também enxerga nela uma figura que se difere em muitos aspectos do oponente republicano.
Biden estava perdendo gradativamente o apoio da parcela negra dos eleitores. Em uma pesquisa de maio, da Pew Research, o atual presidente dos EUA contava com 77% do apoio do eleitorado negro. Em 2020, 92% dos negros votaram no democrata.
Com Kamala no páreo, o cenário se transforma, segundo especialista. De acordo com Amâncio Nunes de Oliveira, doutor em Ciência Política e professor do curso de Relações Internacionais da USP, caso Kamala se confirme como candidata democrata, haverá uma injeção de ânimo entre a maioria dos eleitores negros.
O Biden tinha um apoio massivo entre negros em alguns lugares. Havia uma grande expectativa, pois, havia uma afinidade eletiva negros com Partido Democrata. Mas houve um desapontamento de medidas para a comunidade, na economia, políticas públicas e etc. Harris dá um ânimo por uma postura mais contundente para a comunidade, seja para o vigor, por ser mais jovem, seja por suas origens.
Amâncio Nunes de Oliveira, doutor em Ciência Política
Kamala tem dois terços da intenção do eleitorado negro, aponta pesquisa. Em pesquisa recente do Instituto Angus Reid com um pequeno recorte 226 eleitores negros, divulgada no dia 29 de julho, a vice-presidente aparece como predileta para a maioria absoluta dos pesquisados. Apesar disso, 17% do grupo ainda não tem certeza se vai votar - o voto não é obrigatório no país. Outros 12% preferem Trump.
A convenção que definirá o candidato democrata para a corrida presidencial deve acontecer entre 19 e 21 de agosto. Portanto, ainda não há confirmação oficial sobre a candidatura de Kamala, mesmo com o endosso de Joe Biden e outros líderes do partido para o pleito.
Horas após o anúncio da desistência de Biden, um grupo de mulheres negras arrecadou US$ 1,5 milhão de dólares para a campanha. Em reunião com mais de 44.000 pessoas, o grupo Win With Black Women, importante entre lideranças negras, definiu o apoio e coletou dinheiro para a campanha democrata.
Além de tração com eleitorado negro, Kamala Harris tem proximidade com outras minorias nos EUA. Filha de pai jamaicano e mãe indiana, a advogada se tornou a segunda mulher negra a tomar posse no Senado e a primeira vice-presidente negra da história do país.
Antes disso, ela já havia sido a primeira mulher negra sul-asiática americana a ocupar o cargo de procuradora-geral da Califórnia. Esse fator, segundo o especialista ouvido pela reportagem, pode se tornar munição contra o adversário republicano.
Esse contraponto de uma procuradora versus um condenado, tem gerado pesadelo entre os republicanos. Para piorar o quadro, Trump poderia ter escolhido para alargar sua base um vice negro, uma mulher, mas ele escolheu um vice que reforça o estereótipo do eleitor. Reforçou sua bolha. No momento que escolheu fazia sentido, pois estava disputando com um perfil similar. Agora, com a Kamala, é diferente. Ele poderia ter escolhido o Tim Scott, por exemplo, primeiro senador negro da Carolina do Sul para tentar mudar esse quadro. Agora é tarde.
Amâncio Nunes de Oliveira, doutor em Ciência Política