Qual é o papel e a influência do Hezbollah no Líbano?
Após quase um ano de ataques quase diários na fronteira do Líbano, a tensão entre o Hezbollah e Israel aumentou nas últimas duas semanas, deixando mais de 600 mortos e cerca de dois mil de feridos no território libanês. O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, declarou que os bombardeios vão continuar e pediu para que os libaneses não protejam os integrantes do grupo xiita.
Mas afinal, o que é o Hezbollah?
O Hezbollah, cujo nome significa "partido de Deus", é uma organização muçulmana xiita criada em 1982, no contexto da guerra civil libanesa (1975-1990). Atualmente, o grupo tem influência política e militar na região. Segundo a Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos, o Hezbollah é um dos grupos não estatais mais fortemente armados do mundo e possui mais de 150 mil mísseis e foguetes.
O Hezbollah nasceu como um grupo de resistência à invasão israelense, principalmente no território xiita, no sul do Líbano. O professor de história contemporânea da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) Murilo Meihy explica que quando Israel invadiu o Líbano, em 1982, com Ariel Sharon, então ministro da Defesa de Israel, a resistência no sul do Líbano foi feita pelo Hezbollah. A ação militar israelense ficou conhecida como operação Paz na Galileia.
Contenção e monitoramento da fronteira trouxe prestígio ao grupo entre os libaneses. "Mesmo com o fim da guerra civil, quando o Exército libanês ainda não havia se organizado, o Hezbollah ficou responsável pelo monitoramento e contenção das invasões israelenses no sul do Líbano. Esse é um papel exercido que durante algum tempo teve o suporte da sociedade civil libanesa", diz o professor.
O braço militar do Hezbollah é considerado uma organização terrorista por muitos países ocidentais. Entre eles, os EUA, a União Europeia, o Reino Unido e o Canadá. Para o professor Murilo Meihy, a classificação é usada de forma política. "O termo 'terrorista' para uma determinada entidade muitas vezes está relacionada a posição geopolítica que essa entidade executa em uma determinada área de influência. Então, em razão do alinhamento do Hezbollah com alguns Estados nacionais no Oriente Médio que são considerados rivais dos interesses das potências ocidentais, como é o caso do Irã e da Síria, por exemplo, em muitos casos ele vai ser chamado de terrorista", explica.
Além de ser um grupo paramilitar, o Hezbollah também é um partido político. O grupo participa de eleições nacionais desde 1992. Atualmente, é uma das grandes forças políticas do país. O movimento xiita tem cadeiras no parlamento, elege deputados e em determinados governos também assume pastas ministeriais. "O Hezbollah joga o jogo político eleitoral dentro do Líbano", comenta Murilo Meihy.
A república parlamentar do Líbano se organiza em torno de um sistema político confessional. Isso quer dizer que o poder público é distribuído entre diferentes comunidades religiosas. Embora 18 delas sejam reconhecidas no país, apenas três monopolizam posições-chave. A presidência fica com cristãos maronitas, o primeiro-ministro é tradicionalmente um muçulmano sunita e a presidência da Câmara dos Deputados é reservada a um muçulmano xiita.
Apoio do Irã
Apoio do Irã também fortaleceu o grupo. O Hezbollah, não por acaso, nasce três anos depois da formação da República Islâmica do Irã, que passa a incentivar as comunidades xiitas fora do Irã para que pudessem exportar o ideal da república islâmica para outros territórios.
O clérigo Hassan Nasrallah lidera o Hezbollah desde 1992. Ele possui laços estreitos com o Irã. Nasrallah assegurou que seu movimento "superou" o número de 100 mil combatentes.
Financiamento de armas e treinamentos. Segundo o Departamento de Estado dos EUA, o Irã fornece ao Hezbollah "a maior parte" do seu financiamento, bem como treinamento, armas e explosivos. Teerã também envia "ajuda política, diplomática, monetária e organizacional", denuncia Washington.
Outro elemento que faz com que o Hezbollah tenha influência na região é o apoio do Irã, não só político, mas também financeiro, tecnológico, de uma aproximação muito profícua nesse caso e que permite, por exemplo, que o Hezbollah atuasse em favor do governo de Bashar Al-Assad na Síria durante a guerra civil no país. O Hezbollah é influente sobretudo não só na sociedade libanesa, mas também como uma força paramilitar regional no Oriente Médio.
Murilo Meihy, professor da UFRJ
Por que o Hezbollah é tão influente no Líbano?
Além do poderio bélico e do prestígio político, o grupo está à frente de uma série de serviços aos libaneses. O grupo proporciona uma grande rede assistencialista no país, como escolas mais baratas, hospitais e serviços públicos de um modo geral.
O grupo xiita fornece o que, muitas vezes, o governo não proporciona. Essa é a análise de Kai Lehmann, professor de Relações Internacionais da USP (Universidade de São Paulo). "Uma das razões pelas quais o grupo é tão influente é porque tem apoio de parte significativa da população porque fornece o que o governo muitas vezes não faz. Isso dá ao grupo uma influência muito grande nas comunidades locais", explica.
Prestígio militar. Para o professor da USP, o segundo fator que traz influência é o poderio bélico que o grupo tem. "Há um histórico de luta de sucessos militares contra Israel. O apoio é bastante concentrado nos muçulmanos xiitas, não é universal mas é significativo. é difícil a gente ter números confiáveis nesse sentido, mas é algo em torno de um terço da população. Não é um grupo pequeno, nem seria facilmente derrotado", destaca Kai Lehmann.
A influência do Hezbollah no território libanês coincide com as regiões do país com perfil demográfico favorável aos xiitas. "Isso significa, parte da periferia sul de Beirute, uma faixa do território do sul do Líbano, próximo à fronteira do Israel, onde se concentram agora grande parte dos bombardeios. E uma porção norte do chamado Vale do Beqaa, um território de fronteira com a Síria, há também uma influência política importante do Hezbollah nessa área. São bolsões dentro do território libanês que demograficamente tem maior presença xiita e ali o Hezbollah encontra a maior força para sua influência no país", ressalta Murilo Meihy.
É importante levar em consideração que, em linhas gerais, alguns analistas e órgãos de imprensa falam, e o próprio governo israelense também, que essa não é uma guerra contra o povo libanês, mas uma guerra contra o Hezbollah. Mas as consequências dessa guerra atingem toda a população libanesa, travam o fornecimento de energia elétrica, causam o deslocamento forçado da população, geram problemas de abastecimento de água, então, ainda que oficialmente se diga que não é uma guerra contra a população libanesa, o conflito atinge a sociedade como um todo.
Murilo Meihy, professor da UFRJ
Qual é a relação do Hezbollah com o Hamas?
Kai Lehmann diz que o objetivo que une o Hezbollah ao Hamas é o desejo de destruir Israel como um Estado viável. "Mas não há uma relação política, social e econômica estreita. Tem certas coisas em comum, mas tem muitas diferenças", diz o professor.
Há também muita diferença no poderio militar dos dois grupos. A organização libanesa é mais poderosa do que o Hamas. Além disso, o grupo que atua na Palestina tem origem sunita. Já o Hezbollah é xiita.
Bombardeios entre Israel e o Hezbollah se intensificaram desde o dia 7 de outubro de 2023. Um dia após o ataque do Hamas contra Israel, o Hezbollah disparou contra posições israelenses em solidariedade com os palestinos.
Apoio do Irã aproxima os dois grupos paramilitares. "São dois grupos atuando em cenários internos, mas o Hezbollah assumindo cada vez mais uma condição regiona dentro do Oriente Médio, dando suporte também a outros grupos com apoio iraniano. Nesse sentido, Hamas e Hezbollah têm em comum o fato de serem frentes de resistência à expansão territorial israelense, tanto em direção à Faixa de Gaza, como em direção ao sul do Líbano", avalia o pesquisador Murilo Meihy.
Risco de guerra
Escalada do conflito acendeu um alerta entre líderes mundiais. O temor é de uma guerra total entre israelenses e o grupo libanês, o que desestabilizaria ainda mais a região, já abalada pelo conflito na Faixa de Gaza. Líderes mundiais estão preocupados com a possibilidade de que os Estados Unidos, próximo a Israel, e o Irã, que apoia o Hezbollah e milícias em todo o Oriente Médio, sejam arrastados para uma guerra mais ampla na região.
Benjamin Netanyahu tem dito o regresso de quase 60 mil moradores às suas casas no norte de Israel se tornou um objetivo de guerra. O primeiro-ministro destacou que seu governo está preparado para tomar "qualquer medida necessária para restaurar a segurança".
A última vez que o Hezbollah travou uma guerra com Israel foi em 2006. O conflito deixou mais de 1.200 mortos do lado libanês, a maioria civis, e cerca de 160 do lado israelense, a maioria soldados. "Israel [agora] quer aumentar a pressão sobre o Hezbollah e forçá-lo a repensar a sua estratégia de alinhamento com a situação em Gaza. A situação é muito perigosa, mas ainda há espaço para a diplomacia evitar o pior", disse à AFP o analista político Michael Horowitz.
Israel fala em 'enfraquecer a ameaça' representada pelo Hezbollah. O governo israelense ameaçou transformar todo o sul do Líbano num campo de batalha, argumentando que o Hezbollah colocou foguetes, armas e forças ao longo da fronteira. Em meio à retórica exacerbada dos últimos meses, líderes de Israel já falaram em provocar no Líbano os mesmos danos causados em Gaza.
Superioridade tecnológica dá vantagem a Israel sobre os rivais. Tanto no Líbano quanto em Gaza, Israel localizou e matou alguns dos principais comandantes do Hezbollah e do Hamas ao longo dos últimos meses.
Não podemos deixar o Hezbollah descansar. Devemos continuar com toda a nossa força.
Herzi Halevi, general israelense
Mas o Hezbollah seria um inimigo mais difícil para Israel que o Hamas. O Hezbollah tem vasta experiência, é altamente disciplinado e conta com um armamento melhor do que seu aliado palestino. Além disso, o movimento libanês já declarou que não quer uma guerra mais ampla.
Paralelamente, as críticas a Israel tem sido cada vez mais duras. Em comunicado divulgado hoje, Iraque, Egito e Jordânia acusam Israel de empurrar a região para uma "guerra total". O presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, foi mais longe, tendo comparado o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu a Adolf Hitler, líder da Alemanha nazista.