Guerras em Gaza e na Ucrânia desafiam negociação do texto final do G20
A escolha das palavras que o G20 vai utilizar para se referir às guerras em curso em Gaza e na Ucrânia é uma das negociações diplomáticas mais difíceis do evento. Ao final da cúpula, na próxima terça-feira (19), é esperada a divulgação de uma declaração final com a visão do G20 sobre os principais desafios globais, entre eles os conflitos armados.
O que aconteceu
A tensão no G20 ocorre porque diferentes lados das guerras estão representados no grupo. No caso da guerra na Ucrânia, a Rússia é uma das principais potências do bloco. Já grande parte da União Europeia se alinha à Ucrânia. No caso de Gaza, Israel não integra o G20, mas tem como parceiro os Estados Unidos, outra grande potência do bloco. Já a África do Sul, que será o próximo país a presidir o G20, apresentou uma acusação contra Israel na Corte Internacional de Justiça pelo "genocídio" em Gaza.
Há um entendimento de que o G20 não é o local adequado para tratar das guerras, mas também que elas não podem ser ignoradas. Em entrevista na quinta-feira (14), diplomatas franceses disseram que o G20 "não é um fórum para discutir geopolítica" e que a manifestação do grupo sobre a guerra não pode travar o avanço em outras pautas, como a ambiental e a social. Por outro lado, conflitos podem gerar impactos econômicos globais. Na reunião preparatória para o G20 entre chefes de Parlamento, o representante do Reino Unido citou a escassez de grãos na África devido à guerra na Ucrânia.
Lula disse que o Brasil não quer "transformar o G20 em discussão sobre guerras", sugerindo que o tema pode ter pouco destaque na declaração final. Em entrevista para uma emissora francesa no início de novembro, Lula defendeu que o espaço para tratar do tema é a ONU, particularmente o Conselho de Segurança. O órgão, porém, tem enfrentado dificuldades para negociar o fim dos conflitos entre Rússia e Ucrânia e Israel e Gaza.
No G20, linguagem neutra sobre as guerras pode ser usada para destravar a aprovação do documento final. Nos bastidores, diplomatas afirmam que o Brasil busca um consenso em torno do tema, ainda que seja preciso usar "suavizar" o texto. Por exemplo, manifestar preocupação com o sofrimento causado pelos conflitos e defender o respeito a princípios já definidos pelas Nações Unidas, sem apontar o dedo para agressores.
A mensagem principal é que é preciso "chegar à paz", diz o diplomata que representa o Brasil nas negociações do G20, Mauricio Lyrio. Para especialistas em relações internacionais, uma declaração mais incisiva sobre as guerras poderia comprometer a aprovação do texto como um todo, com prejuízos para outros temas, como o meio ambiente e políticas sociais.
Mas alguns membros do G20 já cobraram um posicionamento mais incisivo sobre Gaza, com a defesa da existência de dois Estados. Gaza é hoje um território, não um país. O chefe de diplomacia da União Europeia, Josep Borrell, disse em fevereiro que há um consenso no G20 de que é preciso haver um Estado de Gaza e que essa posição precisa ficar clara.
No G20 de 2023, na Índia, a falta de consenso sobre a guerra na Ucrânia quase impediu a divulgação de uma declaração final. O texto demorou horas para sair. O documento condenou o "uso da força" e as "conquistas territoriais" contra a "soberania de qualquer país", mas não acusou diretamente a Rússia, que é membro do grupo, pela invasão à Ucrânia. Fontes disseram à agencia italiana Ansa que o modelo de redação foi proposto por África do Sul, Brasil, Índia e Indonésia e teve o aval do G7 e da China, "deixando a Rússia isolada e na posição de ter de aceitar".
Já o G20 de 2024 tem o desafio adicional de uma nova guerra, a de Israel contra Gaza. O conflito se iniciou cerca de um mês após o G20 de 2023, que foi realizado no mês de setembro do ano passado, com os ataques do Hamas a Israel em 7 de outubro. Em resposta, Israel iniciou ataques intensos a Gaza, matando mais de 40 mil pessoas e destruindo completamente a infraestrutura do território. A ação de Israel tem motivado críticas contundentes da comunidade internacional e até repreensões dos Estados Unidos.
Nós não achamos que esse fórum do G20 será um espaço para discutir a guerra entre dois países. Nós achamos que esse fórum é para discutir os temas que já foram abordados no último G20. E nós queremos evoluir. A guerra tem um espaço dentro da ONU e a gente precisa criar uma estrutura de poder dentro da ONU, com mais credibilidade e representatividade para discutir a guerra da Ucrânia.
Lula, em entrevista para emissora francesa em 1º de novembro
Essas duas guerras são os temas mais espinhosos na política global. O governo brasileiro tem feito esforços para que esses temas não ocupem um espaço muito grande na cúpula, porque senão nada mais vai avançar. Provavelmente o que vamos ter do G20 em relação a essas guerras vai ser uma declaração muito genérica, inofensiva, sem apontar dedos para culpados.
Maurício Santoro, cientista político e especialista em relações internacionais
Como funciona a negociação
Menção sobre as guerras só deve ser definida no final do fórum, justamente por ser um dos temas mais espinhosos. O G20 vem realizando reuniões preparatórias ao longo do ano, mas nenhuma delas envolveu as guerras em curso. Foi uma estratégia proposital, para evitar que divergências sobre este assunto impedissem consensos em outros temas.
Negociação dos termos está sendo feita entre os chefes da diplomacia dos países, reunidos desde terça-feira (12). Antes disso, as questões mais sensíveis já foram apuradas por negociadores dos países, que levaram as informações para os chanceleres. Eles avaliam a linguagem que os outros países usam nas suas declarações e nos tratados que assinam. Tudo isso conta na hora de costurar um texto.
Definição final pode escalar até os chefes de Estado. Em alguns casos, a palavra final acaba sendo dada apenas pelo topo das lideranças do G20 — esse é um dos motivos pelos quais os chefes de estado se reúnem presencialmente nos fóruns internacionais.
Newsletter
DE OLHO NO MUNDO
Os principais acontecimentos internacionais e uma curadoria do melhor da imprensa mundial, de segunda a sexta no seu email.
Quero receberPutin, Zelensky e Netanyahu não vêm
Vladimir Putin não virá para o G20 no Brasil, onde correria o risco de ser preso. Há uma ordem de prisão contra o presidente russo, emitida pelo Tribunal Penal Internacional, devido a crimes cometidos na Ucrânia. Além disso, se Putin viesse, "vários [outros] presidentes não ficariam na sala", disse Lula. Isso inviabilizaria as discussões finais do G20.
A Rússia estará representada no G20 por seu chanceler. Sem a presença de Putin, fica ainda mais delicada a negociação da declaração final e eventuais menções à guerra na Ucrânia com a Rússia.
O problema não é apenas proteger o Putin para não ser preso no Brasil. Isso é a coisa mais fácil de fazer. O problema é que tem no G20 vários presidentes que não ficariam na sala se o Putin entrasse. Todos os países europeus participam do G20, mais os Estados Unidos, o que seria uma coisa muito desconfortável.
Lula, em entrevista à CNN americana exibida em 7 de novembro
Zelensky não vem, porque a Ucrânia não faz parte do G20. Em entrevista concedida em outubro para a imprensa local, o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, disse que o G20 no Brasil poderia ser uma "boa oportunidade" para os países discutirem propostas de paz.
Netanyahu não vem, já que Israel também está fora do grupo. Além disso, Israel declarou o presidente Lula como persona non grata, colocando as relações entre os países em suspenso.
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.