Topo

Retrospectiva 2012: Filme retrata os bastidores da morte de 3 milhões de chineses em 1942

O jornalista Theodore White é interpretado por Adrien Brody no filme "Back to 1942", sobre a realidade da província de Henan em 1942, quando 3 milhões de pessoas morreram de fome - Divulgação
O jornalista Theodore White é interpretado por Adrien Brody no filme "Back to 1942", sobre a realidade da província de Henan em 1942, quando 3 milhões de pessoas morreram de fome Imagem: Divulgação

Liu Zhenyun*

Do New York Times

22/12/2012 06h00

A China se torna o segundo maior mercado cinematográfico do mundo, perdendo só para os EUA. Por que os chineses não estão preparados para reconhecer a morte de fome de 3 milhões de pessoas na província de Henan, em 1942?

Sou descendente dessas vítimas, mas não sabia nada sobre a tragédia até 1990, quando, aos 32 anos, um amigo meu resolveu escrever a história das catástrofes chinesas e me pediu que o acompanhasse a Henan para ajudá-lo a entender melhor o que houve por lá. Foi assim que soube da magnitude do desastre.

Foi ele que me contou que a seca matou 3 milhões de pessoas em 1942. Não consegui imaginar esse número. Como fator de referência, ele explicou que os nazistas mataram mais de 1 milhão de judeus em Auschwitz.

Em choque, voltei à província onde nasci determinado a revisitar aquele período terrível e a resgatar aqueles 3 milhões de almas das areias do tempo.

Não demorei muito, porém, para fazer uma estranha descoberta: os sobreviventes e seus descendentes relegaram todas as lembranças de 1942 ao esquecimento. Era por isso que eu não sabia nada sobre aquele período terrível.

  • Ruth Frems­on/ The New York Times­

    O rio Amarelo, no noroeste da China, próximo à província de Henan, onde 3 milhões de pessoas morreram de fome em 1942


Minha avó sobreviveu à penúria, mas, quando perguntei sobre o ocorrido, ela respondeu: “1942? O que é que tem?”. Expliquei que era o ano em que muita gente tinha morrido de fome. “Tem gente morrendo de fome o tempo todo”, ela disparou. “O que teve de tão especial nesse ano?”

Além da amnésia coletiva, outros detalhes me deixaram perplexo: o que o governo estava fazendo em 1942 enquanto 3 milhões de pessoas morriam de fome? Como não previu uma tragédia dessa proporção?

Eu me despeço dos infelizes esquecidos e viajo àquele ano terrível sozinho - e o que encontro são mais detalhes do que imaginava.

Em 1942, o Japão ocupava metade da China e Henan estava cercada por suas tropas. Era um país fraco e, mesmo com as secas castigando a região, o governo não tinha recursos para realizar um plano emergencial. Para usar a catástrofe em seu favor, os líderes da época devem ter pensado: por que não jogar essa responsabilidade em cima dos invasores?

Discretamente, as autoridades então se retiraram da província, mas os japoneses perceberam o plano e mantiveram os pelotões na divisa, optando por não invadi-la. O resultado é que virou terra de ninguém - e, enquanto isso, 3 milhões de pessoas morreram de fome.

Como eu vi de perto, uma catástrofe que ocorre num local abandonado pelo seu próprio governo - e até por seus inimigos - é facilmente esquecida.

Como consegui então, em 1990, encontrar detalhes sobre tamanha desgraça?

  • Divulgação

    Tim Robbins vive Thomas Megan, bispo da Missão Católica de Loyang, no filme "Back to 1942"

Contando com a ajuda do jornalista norte-americano Theodore White, da revista "Time". Em 1943, ele foi a Henan com um colega, Harrison Forman, do "Times" londrino. Durante a viagem conheceram um norte-americano chamado Thomas Megan, bispo da Missão Católica de Loyang, que os acompanhou a diversos lugares - e o que viram foi horripilante (algumas cenas podem ser vista aqui).

Eles testemunharam pessoas literalmente morrendo de fome, viram cachorros devorando cadáveres, encontraram evidências de canibalismo.


Ao voltar a Chungking, capital da China em tempo de guerra, White contou tudo o que viu ao líder do governo, Chiang Kai-shek, e recontou a calamidade num artigo para a "Time", o que acabou forçando o governo a fazer algo pelas vítimas - mas com tamanha corrupção em todos os níveis, ela nunca chegou aos mais necessitados, que continuaram morrendo de fome.

White narrou com detalhes o que viu em Henan no livro que escreveu em 1946, “Thunder Out of China”, e outro, em 1978: “In Search of History: A Personal Adventure”.

A minha inspiração para escrever um romance sobre a penúria de 1942 veio dos relatos que ouvi dos sobreviventes sobre o estado de espírito desses 3 milhões de cidadãos que esperavam a morte - mas isso só ocorreu depois que lhes apresentei os fatos sobre os horrores por que os que morreram passaram.

Aposto que europeus e norte-americanos teriam ficado indignados se enfrentassem circunstâncias semelhantes. “Por que eu tenho que morrer?”, seria a pergunta. “Quem é o responsável pela minha morte?”

Os nativos de Henan, porém, pareciam não se mostrar inconformados com o que estava acontecendo. Enquanto lutavam para sobreviver, umas das coisas mais significativas que deixaram foi uma piada para lá de reveladora.

O sr. Zhang estava prestes a morrer na estrada, mesmo depois de ter fugido da fome. Seus últimos pensamentos não foram para o governo chinês, os invasores japoneses nem ninguém mais no mundo; ele só se lembrou de seu velho amigo, o sr. Li, que tinha morrido três dias antes.

“Consegui superar o velho Li por três dias”, o sr. Zhang murmurou. “Nada mal.”

Em tempos de desespero, quando os campos estão coalhados de corpos, o canibalismo não é encarado com algo imoral. Assim, enquanto o sr. Zhang sucumbia à fome, lá veio o sr. Wang, que abaixou as calças do moribundo e começou a cortar um pedaço da perna dele. A dor o fez despertar.

“Ainda estou bem”, ele protestou. O sr. Wang examinou o outro de perto e disse: “Não está, não”. O Sr. Zhang pensou naquilo por um momento e, concluindo que não estava mesmo bem, caiu no chão com um estrondo, mortinho.

Por que nós, chineses, temos um senso de humor tão sombrio? Por que somos tão esquecidos? A resposta que a minha avó me deu quando perguntei de 1942 dá uma dica: há inúmeros casos de fome e canibalismo na história chinesa - e como um povo que tem de enfrentar tantas desgraças por tanto tempo agiria a não ser apelando para o esquecimento?

 

  • Divulgação

    Zhang Guoli é uma das estrelas do filme "Back to 1942", do chinês Feng Xiaogang


Depois de sofrer tantas provações ao longo dos séculos, os chineses aprenderam a reagir à dura realidade com uma atitude que a deixa ainda mais dura. O humor e uma grande dose de amnésia são os segredos para enfrentar a tragédia.

Eu escrevi o meu romance em 1990, há 22 anos. Depois de 18 anos de preparação e superação de um sem-fim de obstáculos burocráticos, o diretor Feng Xiaogang concluiu as filmagens de “Back to 1942” (De volta a 1942), adaptação desse trabalho. No filme, Adrien Brody interpreta Theodore White e Tim Robbins é o bispo Megan. Setenta anos depois, seguindo os passos de seus personagens, os dois atores foram à China.

Brody fez “Além da Linha Vermelha” e “O Pianista”, ambos passados em 1942. E, depois de reviver o mesmo ano em três partes do mundo, deve ter entendido as diferenças entre norte-americanos, europeus e chineses: enquanto os dois primeiros fazem questão de lembrar, os chineses preferem esquecer.

Quando Robbins chegou à China para rodar o filme, ele disse a mim e a Feng Xiaogang que a humanidade que tinha visto no roteiro era o motivo que o levara a querer encarnar um bispo católico. Afirmou também que o filme revelava o lado mais sombrio da natureza humana - e o mais belo. Imagino que ele estivesse se referindo aos padres que montaram sopões e ao religioso que tentou levar um homem moribundo para o refúgio... Ou talvez à triste autocrítica e ao senso de humor mordaz que os chineses usam nos últimos momentos da vida.

Tanto o livro “Remembering 1942” como o filme “Back to 1942” são dedicados a tudo o que foi esquecido.

  • Bai J­ikai

    O autor chinês Liu Zhenyun

* Liu Zhenyun é um dos escritores contemporâneos mais famosos da China. Vários de seus trabalhos serviram de inspiração para filmes ou programas de TV. Sua obra “A Word Is Worth Ten Thousand Words” ganhou o prestigiado Prêmio de Literatura Mao Dun em 2011. (Este texto faz parte da série "Fator de Mudança: Pauta Global 2013", com fotos e desenhos sobre eventos e tendências de 2012 que continuarão repercutindo em 2013.)