Preocupados com o presente, iraquianos preferem ignorar 10º aniversário de guerra
A guerra que chegou há uma década ainda é dolorosa demais e controversa demais para ser ensinada aos alunos nas escolas ou ser tema de um estudo acadêmico sério nas universidades. A imprensa local também está ocupada demais noticiando os mais recentes atentados à bomba, protestos e desacordos políticos para dar atenção ao aniversário.
Assim, enquanto historiadores, estudiosos e ex-autoridades do governo em Washington e Londres apresentam uma série de recordações na ocasião do 10º aniversário da invasão ao Iraque – simpósios foram realizados, livros foram escritos, novos estudos foram feitos sobre o custo humano e financeiro do conflito – os iraquianos estão mais preocupados com o presente.
Na manhã da última sexta-feira (15), em um mercado de animais de estimação nesta cidade, Hasim al-Shimari assistia a dois galos brigando e ofereceu uma resposta aos que estão comemorando o aniversário da guerra.
"Veja essas pessoas", ele disse. "Elas estão aqui para vender aves e ganhar algum dinheiro para ajudá-las a sobreviver. As pessoas não estão interessadas nisso. Elas estão desesperadas e querem ver mudanças reais, de modo que pararam de olhar para as notícias ou de lembrar de eventos do passado."
No Iraque, a guerra não é algo para os livros de história, mas sim um evento cujo resultado ainda é incerto.
Em entrevistas recentes aqui, a maioria dos iraquianos, como Al-Shimari, diz dar pouca ou nenhuma atenção ao aniversário que se aproxima, que cai na quarta-feira (20), apesar da visão das equipes de televisão estrangeiras realizando reportagens por toda a cidade nesta semana os fazer se recordarem de que a guerra, ao menos para os conquistadores, é algo sobre o qual se deve refletir.
"Se nossa situação estivesse melhor, nós certamente nos lembraríamos do dia em que os americanos vieram libertar o Iraque e nos dar uma chance de construir um futuro melhor", disse Al-Shimari. "Mas os americanos não nos deram essa chance. Eles fizeram todo o possível para assegurar que o Iraque fosse arruinado."
Aqui, a guerra não é algo para os livros de história, mas sim um evento cujo resultado ainda é incerto.
"Eu não me recordo nem mesmo da minha idade", disse Abdullah Fadil, que vende chá desde 1982 no lado de fora de uma mesquita em Adhamiya, um bairro predominantemente sunita na capital. "Eu acordo todo dia com mil problemas, então por que deveria me lembrar disso?"
A imprensa local está concentrada na cobertura do aumento das tensões sectárias e protestos que se espalham por regiões predominantemente sunitas.
"Eu sei que, entre meus amigos jornalistas, ninguém está disposto ou está voltado para escrever ou fazer alguma reportagem a respeito", disse Naseer Awan, o diretor da “Agência de Notícias Iraquiana”. Ele expressou pesar de que os iraquianos possam não ganhar uma perspectiva histórica apropriada, dizendo que a imprensa "deveria ter preparado reportagens extensas e uma narrativa dos eventos tendo como início a invasão liderada pelos Estados Unidos e suas consequências".
Como resultado, ele disse, os iraquianos podem não "entender o que isso causou ao Iraque e à toda a região".
Outro jornalista, Sabah Sellawi, editor do jornal "Maysan", disse: "A instabilidade no Iraque é mais importante do que esse dia".
Além disso, se algum aniversário é importante para os iraquianos, é 9 de abril – o dia em que Bagdá caiu para as forças americanas e iraquianos animados, com a ajuda de soldados americanos, derrubaram a estátua de Saddam Hussein em um parque da cidade – não o aniversário do início do bombardeio a Bagdá.
O legado principal da guerra, dizem muitos especialistas, é um sistema político dado à luz pelos Estados Unidos no qual os espólios da guerra são divididos segundo linhas étnicas e sectárias. Assim, um acordo – nas ruas e no Parlamento – tem se mostrado quase impossível. Hoje, a noção de uma identidade nacional que supere a identidade sectária parece uma fantasia.
"As pessoas costumavam sonhar em um Iraque para todos os iraquianos", disse Ahssan al-Shmmary, um professor de ciência política da Universidade de Bagdá. "O que era um sonho para os iraquianos se transformou em um pesadelo para os iraquianos." Ele acrescentou: "Esse é o motivo para as pessoas não estarem pensando a respeito".
Os comentários de Al-Shmmary contradizem seu próprio destino. Como muçulmano xiita, ele viu sua vida melhorar enormemente à medida que a guerra subverteu uma ordem social, na qual a minoria sunita controlava o poder. "Antes de 2003, eu era como um escravo, e ninguém sabia a meu respeito", ele disse. "Agora eu me sinto como se existisse neste mundo." Ele disse que se transformou em "um comentarista político famoso".
Os muçulmanos sunitas não se saíram tão bem, e muitos iraquianos expressaram a sensação de que as tensões sectárias pioraram.
Na noite de quinta-feira (14), Fadil, o vendedor de chá, sentou-se em um café ao ar livre na calçada oposta à da mesquita em Adhamiya, que por meses tem sido cenário de manifestações – das quais ele tem sido um participante entusiasmado – de sunitas após as orações de sexta-feira. Vários utilitários esportivos blindados próximos indicavam a visita da elite do poder que, com seus comboios de parar o trânsito, suas promessas não cumpridas de ao menos manter as lâmpadas acesas e as ruas limpas, sem contar o que muitos caracterizam como sendo sua corrupção, parecia ainda mais desconectada dos cidadãos comuns.
Fadil, um sunita que disse que costumava trabalhar na temida polícia secreta de Saddam Hussein (ele era apenas um cozinheiro, ele insistiu, e nunca portava arma), disse não ter dinheiro para uma casa e que tinha dificuldade em sustentar sua esposa e quatro filhas. Ele disse que costumava ganhar um dinheiro extra limpando as ruas em seu bairro, mas então o governo deu o trabalho para xiitas de outras partes da cidade.
"Os sunitas estão sendo negligenciados aqui", disse Fadil. "Eles não estão nas forças de segurança. Eles não estão no governo."
Em outras palavras, ele tem preocupações mais urgentes do que lembrar de um dia que preferiria esquecer. "Nada foi realizado, então por que deveria me lembrar?" ele perguntou.
No mercado de animais de estimação, Karrar Habeeb, um marceneiro de 22 anos, fez uma pausa, surpreso por terem lhe perguntado sobre aquele que, certamente, foi o evento definidor de sua juventude.
"Eu não sabia", disse Habeeb sobre o aniversário. "Nós ainda estamos falando sobre os americanos? Eu não acho que precisamos de qualquer tipo de celebração ou fazer um esforço para lembrar daquele dia. Eu acho que até mesmo os americanos gostariam de poder esquecê-lo."
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