Análise: Mundo de hiperconectividade não é tão novo como se imagina
Há pouco tempo levei minha filha de 16 anos para ver o trecho do Muro de Berlim preservado que faz parte do acervo de um museu dedicado à divisão da cidade, da Alemanha e da Europa. Era uma manhã de sol. Os turistas contemplavam o muro, lendo as descrições das vidas jovens que se perderam em tentativas desesperadas de fuga do Império Soviético.
Adele, nascida em 1997, com apenas um dedinho no século passado, andava para lá e para cá examinando as relíquias com atenção. De vez em quando dava uma espiada no Facebook pelo celular. "Parece tudo tão antigo", comentou, apoiando-se no pedaço de parede. "Tipo, tem cara de coisa do século 19."
Achei seu veredito meio rigoroso demais, mas, por alguma razão, não tive coragem de protestar, de dizer que aquele muro e aquela divisão eram tão recentes que vivi grande parte da minha vida com eles; ou que tinha visitado Moscou quando tudo ainda era coberto pelos tons cinzentos do comunismo; ou que já tinha me resignado a nunca mais ver a Europa unificada. De repente me pareceu mesquinho contestar sua verdade contemporânea. Como diz a peça "The History Boys": "Não há período mais remoto que o passado recente."
Para a geração de Adele, a Guerra Fria acabou há uma eternidade, assim como o próprio século 20. Que importância pode ter o fato de que, há apenas cem anos, um mundo cheio de otimismo semelhante, convencido da inevitabilidade do Progresso (escrito com letra maiúscula para demonstrar sua essência quase religiosa), estava mergulhado na Primeira Guerra Mundial, com cinco impérios, hoje todos desaparecidos ? o britânico, o alemão, o austro-húngaro, o czarista e o otomano ? envolvidos numa matança nunca antes concebida? Ou que desse cataclismo ? e do rancor dos alemães pela derrota ? outra guerra nasceria, resultando na divisão da Europa e nesse muro? O tempo corre. Não pode ser parado.
Será que não? Os aparelhos eletrônicos atuais registram e monitoram cada movimento nosso e, gostando ou não, cada um de nós vai deixar para a posteridade um avatar virtual, um ser digital cujas ligações, mensagens, transações, paixões e perdas vão continuar vivendo num espaço cibernético vasto e sem regras. A vida após a morte é uma realidade, pelo menos para a nossa ciberidentidade.
Mesmo os nossos corpos físicos podem ficar por aqui por mais tempo. Conversei há pouco tempo com um médico que acredita piamente que, ainda neste século, encontraremos os meios de estancar e reverter o processo de envelhecimento ? e chegou a sugerir que será rotina as pessoas viverem até os 150, quiçá 200 anos. Sua empolgação era evidente não só com a possibilidade de poder dobrar a perspectiva de vida, mas de transformar o sentido de tempo. Eu achei a ideia assustadora, uma afronta ao delicado equilíbrio entre a humanidade e a natureza. A morte é temida, mas é ela que faz do tempo um elemento vivo. Sem ela, não há resolução; a vida se torna um espelho sem reflexo.
O tempo não é linear; ele anda em círculos. Nas pesquisas que fiz para o livro de memórias que publicarei no ano que vem e que retraça o caminho percorrido pela minha família da Lituânia à África do Sul e depois ao Reino Unido, EUA e Israel, me surpreendi com os padrões recorrentes. Vejo meus antepassados romperem com o passado, tentarem destruí-lo, enterrá-lo; vejo-os perdendo o contato uns com os outros e partindo para o outro lado do mundo. Vejo o vaivém da sorte e a luta pela identidade e assimilação dos judeus ? e o tempo todo eles levam consigo esse gene maníaco-depressivo que forma uma corrente inquebrantável com o passado, que pode se manifestar a qualquer momento e criar confusão.
Eles também levam consigo algo intrínseco ao estado depressivo: a perda. Além de muitas outras coisas, o desarraigamento é também perda. Em "Os Anéis de Saturno" (“The Rings of Saturn”), W.G. Sebald escreve: "Todavia, minha mente racional é incapaz de enterrar os fantasmas da repetição que me perseguem com uma frequência cada vez maior." Poucos conseguem. A vida se esvazia e acelera. E também se repete.
Meu pai, Sydney, estudou na Escola King Edward VII, em Johannesburgo. Fundada em 1902, depois da Guerra dos Bôeres, foi batizada com o nome do monarca britânico da época e fez o possível para imitar na distante vastidão africana os costumes da educação pública inglesa: o blazer verde com o emblema da escola que trazia uma coroa e o leão; as reuniões na capela de pé-direito alto e paredes de lambris; as salas de aula dispostas ao redor de prédios de tijolinhos vermelhos, dando para um pátio de colunas; os "Sim, senhores!" e "Não, senhores!" e os técnicos de críquete, enviados da Inglaterra para passar o conceito de "jogo limpo". Dava até para rodar uma sequência dos filmes de Harry Potter ali dentro.
Sydney conta que todo dia ouvia o diretor dizer: "Vamos rezar: Deus, dê-me a coragem para aceitar as coisas que não posso mudar, mudar as coisas que posso e a sabedoria para saber a diferença". Sydney não podia mudar o fato de que, toda manhã, ao lado de outros alunos judeus, tinha que ficar no pátio durante as orações. Kentridge, Kaplan, Meikle, Mendelsohn, Simon, Cohen: amontoados ali fora, os meninos excluídos. Eles nunca reclamavam: talvez fosse a tal da sabedoria de discernir entre o que pode ser mudado e o que não pode.
Na revista da escola de 1938, ano em que meu pai se formou, um artigo abordava as conquistas extraordinárias da tecnologia: "A máquina aproximou os homens como nunca antes na nossa história. Paris e Berlim estão mais próximas hoje do que vilarejos vizinhos da Idade Média. De certa forma, a distância foi aniquilada. Voamos à velocidade do vento e levamos nas mãos armas mais perigosas que o raio." E continuava: "Na perspectiva correta, o desafio das máquinas é a maior oportunidade que o homem já teve. Que da correria e reviravoltas da confusão do nosso tempo se erga uma ordem majestosa de paz e prosperidade."
No fim das contas, o mundo de hiperconectividade e as pressões que ela gera nem são tão novos assim. Os fantasmas da repetição estão lado a lado com os profetas do progresso. Da "correria e reviravoltas" de 1938, onde "a distância foi aniquilada" ? quantas vezes essa frase é usada ainda hoje? ? viriam, em sequência, a matanças nas cidadezinhas dos meus avós na Lituânia, o assassinato em massa dos judeus na Europa, Hiroshima e Nagasaki e a angústia de toda a humanidade.
Como judeu, eu também enfrentaria formas de exclusão no meu colégio em Londres, apesar de todas as tentativas de assimilação da minha família. O tempo passado continua dentro do tempo presente. Os avanços da raça humana são como uma espada de dois gumes, pois há sempre a possibilidade de que a ordem vá para os ares à brisa mais inocente.
As maravilhas da tecnologia eliminam algumas barreiras, mas, de certa forma, cria outras. A nossa vida digital, tão cheia de opções, pode ser a inimiga da sabedoria e da visão. A única coisa em que os assuntos humanos sempre se baseiam é na surpresa.
Em seu novo livro, “The War That Ended Peace”, Margaret MacMillan encontra semelhanças impressionantes entre aquela época e os dias atuais: "O nosso mundo está enfrentando os mesmo desafios -- alguns revolucionários e ideológicos como o fortalecimento de religiões militantes ou movimentos de protesto social, outros resultantes do estresse entre nações em ascensão e declínio, como a China e os EUA. Temos que pensar com cuidado na forma como as guerras acontecem e no que fazer para manter a paz."
A condescendência, fora de hora e lugar, acontece numa época em que o poder anda instável e há grandes mudanças. Por um lado, o monitoramento da NSA, que irritou e indignou vários países, entre eles Brasil e Alemanha, é um problema geopolítico; por outro, representa os velhos dilemas de segurança X liberdade e a tecnologia vista como elemento libertador ou escravizador, apenas sob outro prisma. Se a tecnologia está disponível, alguém vai usá-la.
O problema é que a NSA a usou com amigos e inimigos. Os coletores de dados, com instantâneos roubados de nossas vidas, se tornaram menos visíveis. Eles acham que sabem o que é melhor para a nossa segurança -- que, pelo visto, equiparam ao nosso bem-estar. O Vale do Silício está cheio de jovens inteligentes consumidos pelo conhecimento infinito que podem utilizar o seu potencial para melhorar a raça humana. Eles não estão errados em serem tão otimistas, afinal, o mundo nunca viu tantos pobres se tornando ricos como nas duas últimas décadas.
Há, porém, um lado sombrio. Evgeny Morozov, que nasceu na Bielorrússia, escreveu em seu livro, "The Net Delusion": "Sem conseguir calcular como os governos autoritários reagiriam a internet, os idealistas cibernéticos não previram o quanto ela seria útil em termos de propagação da doutrina, da sofisticação da vigilância que desenvolveriam e como os sistemas de censura se modernizariam."
É incrível, talvez até estimulante, que apesar de todas as novas possibilidades de coleta e análise de quantidades infinitas de dados, nossos poderes de previsão continuem tão limitados quanto sempre foram. A impressão é a de que a natureza humana, acima de tudo, insiste em manter uma qualidade: seu mistério.
Ninguém anteviu os protestos árabes que depuseram ditadores e, no entanto, não conseguiram realizar seus objetivos. Poucos puderam antecipar que o levante sírio contra Bashar Assad pudesse, se tivesse espaço, se tornar um confronto regional entre xiítas e sunitas, berço de proliferação do terrorismo jihadista e uma guerra por procuração entre Irã e Arábia Saudita, o Ocidente e a Rússia. A crise do euro era totalmente previsível, sim, mas acabou se tornando totalmente imprevisível. Uma revolução energética está tornando os EUA autossuficiente, estimulando o ressurgimento da manufatura. Quem andava ocupado contando os EUA como carta fora do baralho teve que rever seus conceitos. Até a Europa está começando a se mexer, já que o crescimento das economias emergentes se mostra instável. O mundo não está tão virado de cabeça para baixo como estava havia alguns anos.
É reconfortante o fato de não sabermos. O que seria da vida sem o acaso? O excesso de dados se encontra com a alma e se confundem. Não consegue lidar com os truques de memória que subvertem o nosso senso de tempo e lógica.
Meu bisavô, Samuel Cohen, abriu um mercado atacadista no centro de Johannesburgo no comecinho do século 20. Cohen & Sons vendia legumes, frutas e verduras locais e produtos da Inglaterra. Tudo o que vinha do Reino Unido tinha a aprovação do velho Samuel. Era a terra da liberdade e do pensamento liberal. Devoto e estudioso do hebreu, língua que ainda não tinha sido revivida, ele passava o tempo livre escrevendo. Durante as pesquisas para o meu livro encontrei seus diários, escritos em hebreu.
Uma das anotações dizia: "O homem tem um senso excepcional para diferenciar o bom do mau. É o resultado de sua experiência e avaliação da simpatia benéfica e da tristeza danosa. De acordo com isso, ele determina o que fazer e do que se afastar. Esses sentimentos levam o homem a fazer o bem pelo bem em si e a evitar o mal só porque é mau ? não por causa da esperança de recompensa ou punição, mas sim baseado numa motivação ou emoção pessoal."
Eu o imagino na varanda de sua casa simples em Johannesburgo, escrevendo essas palavras ás vésperas da Primeira Guerra Mundial. Elas me foram traduzidas por um primo em Jerusalém que foi criado numa família secular, mas virou um judeu devoto. Um tipo de círculo completo, que por sinal acho bem satisfatório, não só pela forma como mostra que os dilemas morais, mudanças e perigos que enfrentamos não diferem muito daqueles das gerações anteriores. Parafraseando Kierkegaard, "o tempo anda para frente, mas a compreensão e o entendimento, para trás." E como o próprio Godard observou, um filme deve ter início, meio e fim ? mas não necessariamente nessa ordem.
* Roger Cohen é sobrevivente da comunicação de massa e colunista do New York Times. Seu quarto livro, "The Ghosts of Memory: A Jewish Family’s Journey", será lançado em 2014.
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