Topo

Antes de ir a Cuiabá, estrangeiros devem aprender "em obras" em vez de "bom dia"

Seth Kugel

De Cuiabá (em Mato Grosso)

28/05/2014 06h00

O rodeio anual da cidade, que dura quatro dias, atrai cerca de 80 mil fãs, quase o dobro do que a liga estadual de futebol atraiu em todo o ano passado. Nenhum time local chegou à primeira divisão brasileira desde os anos 1980.

Então, muitos brasileiros ficaram surpresos quando esta cidade quente como um radiador, com 570 mil habitantes --a capital do Estado rico em soja, Mato Grosso--, foi escolhida como uma das 12 cidades anfitriãs da Copa do Mundo, e ainda mais quando as autoridades decidiram investir cerca de US$ 1,4 bilhão (cerca de R$ 3,1 bilhões) para renovar a antiquada infraestrutura de Cuiabá e catapultá-la para a modernidade para o mundo todo ver.

“Nós somos os líderes mundiais no agronegócio”, disse Maurício Guimarães, secretário da Secopa, agência estatal criada para gerir os esforços da Copa do Mundo de Cuiabá. “Precisávamos levantar o capital para coincidir com a influência do nosso Estado”.

Isso ainda pode acontecer, eventualmente. Mas, quando a Copa do Mundo começar no próximo mês, Cuiabá se parecerá quase como está hoje: um canteiro de obras de viadutos, passagens subterrâneas, projetos de expansão de estradas, pontes e linhas de veículo leve sobre trilhos, tudo inacabado. Os fãs do futebol que pretendem aprender algumas palavras em português antes de sua chegada podem pular o “bom dia” e o “obrigado” e aprender “desvio” e “em obras”.

“É uma pena que a cidade terá essa aparência para receber os turistas”, disse Hélio Pimentel, músico e escritor de uma coleção de ensaios sobre Cuiabá. “Eles deveriam ter investido apenas no estádio, no aeroporto e nas principais avenidas. Mas o plano era muito extenso. A cidade vai ficar legal, mas quando? Pode ser daqui a um, dois, cinco, 11 anos.”

Pouco conhecida até mesmo dentro do Brasil, Cuiabá talvez tenha sido a menos provável das cidades escolhidas para sediar parte do torneio. Até a capital amazônica de Manaus, uma das que vai sediar a Copa do Mundo e que muitas vezes é caricaturada como um posto avançado de selva por muitos na imprensa mundial, tem 1,8 milhão de habitantes, voos diretos para Miami e décadas de experiência com o turismo ligado à floresta tropical.


Alguns turistas internacionais passam uma noite em Cuiabá em seu caminho para o Pantanal, em busca de onças, lobos-guarás e centenas de espécies de aves. Mas, até agora, o maior evento de Cuiabá certamente tem sido regional: a Expoagro, uma feira estadual que atrai 300 mil pessoas por 11 dias, muitas delas para o rodeio de quatro dias. Ainda assim, uma estreita relação entre o ex-presidente do país Luiz Inácio Lula da Silva e um magnata da soja que foi governador do Estado, Blairo Maggi, pode ter pesado na balança para que esta cidade se tornasse uma vitrine da Copa do Mundo.

O agronegócio e a cultura de caubói dão a identidade ao Estado. As lojas vendem botas de caubói feitas com pele de cobra e esporas assustadoras. Em frente à loja Casa do Ginete, um competidor de rodeio de 17 anos de idade chamado Gabriel Neri mostra uma cicatriz vertical longa em seu abdômen, cortesia de um casco de touro.

“A adrenalina é incomparável”, disse ele. “Eu amo o esporte”.

A popularidade dos rodeios vem à custa de times de futebol locais, que têm sorte quando atraem 2.000 mil torcedores para os jogos. Isso gerou temores de que a novinha Arena Pantanal de Cuiabá vá se tornar um elefante branco após o torneio. No entanto, esse não é o ponto, disse Guimarães.

“Temos uma grande tradição de futebol”, disse ele. “Nos últimos 20 anos, ela vem declinando. Mas eu estou muito confiante de que a Copa do Mundo foi apenas o pontapé necessário para trazê-la de volta”.

Apesar das outras cidades brasileiras também estarem enfrentando dificuldades para concluir os projetos, Cuiabá tem se destacado por seus problemas. Inúmeros prazos foram fixados e perdidos, falhas de engenharia expostas, investigações de corrupção iniciadas e trajetos desviados. Quatrocentos e oitenta eletricistas, soldadores, encanadores e outros vêm lutando para completar o novo terminal do aeroporto até o dia 5 de junho.

“Em todos os meus anos de engenharia”, disse o engenheiro Lucas Ribeiro, que trabalha no projeto para a Infraero, a estatal que dirige os aeroportos do Brasil, “é o período de tempo mais condensado que eu já vi”.

É impossível não esbarrar no maior e mais polêmico projeto de todos, um sistema de veículo leve sobre trilhos estimado em US$ 714 milhões (cerca de R$ 1,5 bilhão): o projeto cortou trechos das principais vias em toda a cidade, derrubando árvores e revolvendo a terra.

Ele também tem sido objeto de intriga política e judicial. O projeto original previa um sistema muito mais barato de corredores de ônibus, mas, em 2012, o governador Silval Barbosa aprovou uma mudança de planos. O Ministério Público do Estado, um corpo de promotores independentes, objetou.

“Não havia nenhum estudo técnico, nenhum estudo de viabilidade”, disse Clóvis de Almeida Jr., um dos promotores do Ministério Público designados para monitorar os projetos da Copa do Mundo. “Não havia nenhum outro resultado possível além do caos”.

Até mesmo pequenos projetos se provaram vexatórios: apesar do prazo de cinco anos para o planejamento, é possível que os trabalhadores não consigam terminar um dos dois campos de treinamento para as oito seleções nacionais que virão para Cuiabá para os jogos, e apenas neste mês começaram as obras no espaço que irá sediar a Fifa Fan Fest, onde os torcedores poderão assistir às transmissões ao vivo dos jogos.

As autoridades locais da Copa do Mundo disseram que os projetos necessários estariam terminados até o início do campeonato, no dia 12 de junho, e que todos os outros seriam concluídos até 31 de dezembro, quando a agência estatal de planejamento será desmontada e o governador Barbosa deixará o cargo. Mas, o discurso oficial e a opinião local são tão contraditórios que os dois lados parecem habitar duas cidades diferentes.

“Todo mundo está em dúvida se eles vão terminar o trabalho”, disse João Flávio Gonçalves, empresário de 25 anos. “É simplesmente um roubo gigantesco”.

Arena Pantanal, construída em Cuiabá (MT) para a realização dos jogos da Copa do Mundo - Divulgação - Divulgação
Arena Pantanal, estádio construído em Cuiabá (MT) para a realização dos jogos da Copa do Mundo
Imagem: Divulgação

Até a espetacular e premiada Arena Pantanal, originalmente programada para ser concluída em 2012, foi adiada por um incêndio, a morte de um trabalhador e um longo calvário que provocou atrasos na entrega dos assentos do estádio, que finalmente chegaram este mês. Durante uma visita no início de maio, os 60 assentos de pelúcia “super VIP” instalados no centro do campo (para as pessoas muito, muito importantes, como chefes de Estado e altos executivos) eram muito grandes, deixando menos de seis centímetros entre cada assento e a fileira a sua frente. (Os planos eram remover uma fileira para permitir mais espaço para as pernas.)

Os visitantes de Cuiabá vão desfrutar de uma vida noturna agitada, inúmeros restaurantes que servem peixe de rio e oferecem apresentações de danças locais chamadas siriri e cururu. É possível, no entanto, que tenham dificuldades para encontrar um lugar para dormir. A cidade tem milhares de quartos de hotel a menos do que a necessidade estimada. A falta de oferta impulsionou os preços para cima: em meados de maio, os poucos quartos disponíveis para os quatro dias de jogo em Cuiabá custavam, em média,  mais de US$ 500 (cerca de R$ 1.110), de acordo com dados do site de reserva de hotéis Trivago, muito acima da média em todas as outras 12 cidades-sede, de US$ 188 (cerca de R$ 420).

Um programa para criar vagas em quartos de família e aliviar a pressão sobre os estabelecimentos hoteleiros registrou cerca de 700 famílias de Cuiabá, mas chegou atrasado, inaugurando o site neste mês com uma interface desajeitada e uma desconcertante tradução pelo Google. (Um programa semelhante em Brasília entrou em funcionamento em fevereiro com um site chamativo, com versões competentes em inglês e espanhol.)

Com milhares de camas ainda faltando, as autoridades se esforçavam para encontrar espaço nas escolas próximas ao estádio e montar acampamentos. Enquanto isso, uma nova campanha de turismo do Estado, promovendo atrações como o Pantanal, foi inaugurada no dia 1º de maio, tarde demais para muitos visitantes da Copa do Mundo fazerem planos.

As autoridades salientam que os verdadeiros benefícios da Copa do Mundo vão se materializar nos próximos anos. A opinião pública também pode mudar, disse Xavier Freire, sociólogo que conduziu um estudo da Copa financiado pelo governo federal em Cuiabá. “Se o Brasil for campeão”, disse ele, “e o governo terminar 80% dos projetos, a população vai esquecer os custos e os prazos estourados”.

Mauro Mendes, prefeito de Cuiabá, conseguiu encontrar uma fresta de esperança até na construção inacabada. “Um lugar onde as obras públicas estão em andamento é um lugar que está sendo transformado”, disse ele.