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Como o acesso de transgêneros a banheiros acirrou uma guerra cultural nos EUA

Mathew Myers, 17, estudante americano transgênero, ao lado de sua mãe, Beth Miller - Jacob Langston/The New York Times
Mathew Myers, 17, estudante americano transgênero, ao lado de sua mãe, Beth Miller Imagem: Jacob Langston/The New York Times

Sheryl Gay Stolberg, Julie Bosman, Manny Fernandez e Julie Hirschfeld Davis*

29/05/2016 06h00

As pessoas em Palatine, Illinois, um subúrbio de classe média de Chicago marcado por pequenos centros comerciais genéricos e ruas sem saída bem cuidadas, não passaram muito tempo debatendo a questão espinhosa dos direitos dos transgênero. Mas no final de 2013, uma atleta colegial transgênero, determinada em defender sua privacidade a ponto de ser conhecida apenas como Estudante A, enfrentou seu distrito escolar para que pudesse usar o vestiário feminino. 

Depois que o Escritório de Direitos Civis do Departamento de Educação federal decidiu a seu favor no ano passado, os dois lados fecharam um acordo: a Estudante A poderia usar o vestiário e a escola instalaria áreas privadas para os alunos se trocarem. Parte da comunidade condenou o acordo; outros se juntaram à União Americana pelas Liberdades Civis de Illinois, que representou a garota, na comemoração de uma vitória dos direitos civis. 

Agora todo o país está em uma batalha acirrada em torno do acesso ao banheiro, com o governo Obama ordenando que todas as escolas públicas permitam que os alunos transgênero usem os banheiros de sua escolha. Por todo o país, os conservadores religiosos estão se rebelando. Na sexta-feira, os legisladores em Oklahoma se tornaram o mais recente grupo a protestar, propondo uma medida para derrubar a ordem, e outra pedindo o impeachment do presidente Barack Obama por causa dela.

Como uma disputa em torno de banheiros, uma questão que não aparece no topo de nenhuma pesquisa nacional, se transformou na próxima fronteira das guerras culturais dos Estados Unidos, indo parar na mesa do presidente, envolvendo uma série de pessoas, algumas com diploma de direito, outras ainda no colégio. 

A diretriz abrangente para as escolas públicas pode ter parecido sair do nada, mas, na verdade, ela foi produto de anos de estudo dentro do governo e de uma campanha altamente orquestrada por parte de advogados de gays e pessoas transgênero. Ciente do papel que os banheiros "Apenas para Brancos" exerceram nas batalhas dos direitos civis há mais de meio século, eles vinham manobrando nos bastidores para pressionar as agências federais, e no final Obama, a tratar de uma questão que vinha perturbando muitos distritos escolares: pessoas com anatomias diferentes devem compartilhar o mesmo banheiro? 

O lobby chegou ao ponto crítico, segundo pessoas que estiveram envolvidas, em uma reunião convocada às pressas em 1º de abril entre altos funcionários da Casa Branca, liderados por Valerie Jarrett, uma assessora sênior de Obama e uma de suas principais confidentes, e líderes nacionais do movimento dos direitos de gays e transgênero. A Carolina do Norte tinha se tornado o primeiro Estado a proibir explicitamente pessoas transgênero de usar os banheiros de sua escolha. 

"Os estudantes transgênero estão sob ataque neste país", disse Chad Griffin, presidente da Campanha de Direitos Humanos, um grupo de defesa baseado em Washington que é ativo na questão, resumindo a mensagem que buscava transmitir a Jarrett naquele dia. "Eles precisam que seu governo federal os defenda." 

Jarrett e sua equipe, ele disse, escutaram educadamente, mas "não revelaram muito", nem mesmo que uma diretriz legal de direitos dos transgênero estava sendo preparada há meses e estava prestes a ser anunciada. 

Quando (ou precisamente como) Obama interveio pessoalmente não ficou claro, já que a Casa Branca não forneceu detalhes específicos. Mas dois dias antes daquela reunião, vários grupos de direitos enviaram uma carta privada a Obama, apelando ao seu senso de história à medida que se aproximava o final de sua presidência, já que ele já tinha promovido o avanço dos direitos de gays e transgênero em múltiplas frentes. 

Em agosto, vários grupos em busca de proteção para as pessoas transgênero, incluindo a Campanha de Direitos Humanos, a Associação Nacional de Educação e o Centro Nacional para os Direitos das Lésbicas, emitiram um guia de 68 páginas para escolas, na esperança de fornecer um roteiro para a Casa Branca. 

No Departamento de Educação, Catherine Lhamon, 44 anos, uma ex-advogada de direitos civis que dirige o Escritório de Direitos Civis da agência e que fez uso agressivo de uma lei federal antidiscriminação conhecida como Título 9º, assumiu a liderança. A decisão do departamento a favor da Estudante A em novembro foi a primeira vez que um distrito escolar foi considerado como tendo violado os direitos civis em questões envolvendo pessoas transgênero. 

A decisão em Palatine repercutiu por todo o Meio-Oeste. No Legislativo de Dakota do Sul, os republicanos ficaram tão alarmados com a situação em Palatine que, em fevereiro, aprovaram uma medida restringindo o acesso ao banheiro a estudantes transgênero, semelhante à medida que posteriormente se tornou lei na Carolina do Norte. Os oponentes enviaram os cidadãos transgênero de Dakota do Sul a uma reunião com o governador Dennis Daugaard, um republicano, e acreditam que influenciaram seu veto à medida. 

Entre os visitantes estava Kendra Heathscott, que tinha 10 anos quando se encontrou pela primeira vez com Daugaard, na época diretor executivo de uma organização de serviços sociais que trata crianças com problemas comportamentais. No gabinete dele para fazer lobby contra o projeto de lei do banheiro, ela se reapresentou. "Ele se lembrava de mim como menino", ela disse. 

Em Wisconsin no ano passado, outro projeto de lei de banheiro apresentado pelos republicanos começou a tramitar no Legislativo, mas foi derrotado por ativistas de direitos dos transgênero, muitos deles adolescentes. 

No centro-norte rural da Flórida, um criador de gado e veterinário aposentado chamado Harrell Phillips ficou alarmado certa noite em março, quando seu filho de 17 anos relatou no jantar que tinha encontrado um menino transgênero no banheiro da escola. 

"Eu fui até o diretor", disse Phillips, que acredita que "você nasce do sexo que Deus escolheu". 

O diretor, e posteriormente superintendente da escola, citando orientação dos advogados, disse que não podia fazer nada. Assim Phillips recorreu ao seu melhor amigo, um advogado de Jacksonville, que o apresentou a Roger Gannam do Conselho da Liberdade, uma organização cristã com sede em Orlando. Gannam representava Kim Davis, a escrivã de Kentucky que foi presa por se recusar a emitir licenças de casamento de mesmo sexo no ano passado. 

Gannam tinha ajudado a bloquear uma ordem antidiscriminação proposta em Jacksonville, com um argumento que os conservadores religiosos vem usando ultimamente com efeito poderoso: ela colocaria em risco mulheres e meninas ao permitir que homens (e até mesmo predadores sexuais) se passando por transgênero tenham acesso aos banheiros femininos. 

Ocala, Flórida, onde o filho de Phillips frequenta a escola, agora está envolvida em uma batalha semelhante a que envolveu Palatine. O conselho escolar, por pressão de Gannam, votou em abril pela exigência de que os estudantes transgênero usem os banheiros correspondentes ao seu sexo biológico. 

Um jovem transgênero de lá foi suspenso por usar o banheiro masculino. A União Americana pelas Liberdades Civis da Flórida processou um dia antes da Casa Branca emitir sua diretriz, e em 15 de maio, ativistas transgênero e seus aliados realizaram uma sessão de estratégia em uma igreja, com um policial montando guarda do lado de fora porque os participantes temiam por sua segurança. 

"É separado, mas igual, de modo que poderiam também indicar banheiros para brancos e negros", disse Beth Miller, a mãe de Mathew Myers, 17 anos, antes Madison, um estudante do Corpo de Treinamento de Oficiais da Reserva em Ocala, que assumiu como transgênero no ano passado, quando pediu ao seu sargento que lhe permitisse trocar o uniforme feminino por um masculino. O sargento aceitou que Mathew mudasse o uniforme, mas a escola lhe pediu que usasse o banheiro de gênero neutro na sala da enfermeira. 

Apesar da Carolina do Norte ter sido o primeiro Estado a adotar uma lei proibindo explicitamente todas as pessoas transgênero de usar os banheiros públicos de sua escolha, muitos dizem que o debate começou em Houston. Em novembro, os eleitores de lá rejeitaram a medida antidiscriminatória municipal, após uma campanha na qual os oponentes da lei resumiram sua mensagem em um slogan de cinco palavras. Ele aparecia em cartazes, camisetas, faixas e propagandas na TV, rádio e Internet: "Nenhum Homem nos Banheiros Femininos". 

A rejeição da medida em Houston agitou os líderes nacionais de direitos dos gays. 

"Eu acho que eles criaram uma campanha pronta que pode ser usada por qualquer cidade, qualquer Estado", disse Griffin, da Campanha de Direitos Humanos, em uma entrevista na ocasião. 

Griffin estava certo. A Aliança de Defesa da Liberdade tem um site, www.safebathrooms.org, que está no ar há duas semanas e conta com um vídeo já assistido mais de 300 mil vezes. 

Mas a Campanha de Direitos Humanos e seus aliados têm seu próprio manual, um que segue a estratégia usada para a igualdade de casamento, na qual travaram a batalha pela aceitação Estado por Estado. Após a derrota em Houston, os próximos alvos deles eram Jacksonville, Flórida, e Charlotte, Carolina do Norte, cidades sulistas onde os defensores atuaram agressivamente para eleger políticos que promoveriam a causa dos direitos de gays e transgênero. 

Em Charlotte, uma ordem antidiscriminação foi derrotada em fevereiro de 2015; depois disso, a Campanha de Direitos Humanos e outros líderes de direitos gays despejaram dinheiro em uma nova organização, a Participe Charlotte. A meta era "identificar, apoiar e perguntar aos candidatos: 'Qual é sua posição neste assunto?'", disse LaWana Mayfield, uma vereadora assumidamente gay. 

Com forte apoio dos ativistas, três novos vereadores foram eleitos no ano passado, mudando a inclinação da Câmara Municipal, que aprovou a lei antidiscriminação em fevereiro. Os conservadores religiosos, que adotaram a mensagem "Nenhum Homem nos Banheiros Femininos" de Houston, ficaram surpresos. 

"É ultrajante ter uma grande organização de Washington, DC, vir ao Estado para influenciar a política pública de uma grande cidade", disse Tami Fitzgerald, diretora executiva do Coalizão dos Valores da Carolina do Norte, um grupo de defesa. 

Os republicanos no Legislativo responderam com o projeto de lei do banheiro, que o governador Pat McCrory, um republicano, sancionou em 23 de março. Nove dias depois, os defensores tiveram sua audiência com Jarrett. A lei da Carolina do Norte, eles argumentaram a portas fechadas, tinha criado um conflito insustentável. 

"As escolas foram colocadas em uma situação complicada pelo governador McCrory", disse Mara Keisling, diretora executiva do Centro Nacional pela Igualdade dos Transgênero, que participou da reunião. "E apenas acelerou esta coisa toda." 

*Matt Apuzzo, em Washington (EUA), contribuiu com reportagem adicional.