O que muda na Síria após ataques americanos? A guerra continua
Um dia depois que os EUA e seus aliados lançaram ataques de mísseis contra o governo sírio, muito pouco havia mudado para a maioria dos sírios que sofrem há anos a guerra civil em seu país.
Em Damasco, a capital, centenas de pessoas se manifestaram em apoio ao presidente Bashar Assad, cujo poder continuou inconteste. Em Raqqa, que foi recentemente libertada do Estado Islâmico, equipes desarmavam as minas que os jihadistas espalharam pela cidade destruída. Em Duma, local do suposto bombardeio químico que provocou os ataques americanos, milhares de pessoas procuravam abrigo, somando-se aos milhões de sírios que foram desalojados de suas casas.
E nas linhas de frente que separam as partes em guerra por todo o país a luta continuava como nos últimos anos.
Agora que a poeira dos ataques americanos assentou, com o presidente Donald Trump declarando "missão cumprida", a Rússia fazendo reclamações e Assad voltando ao trabalho, como a Síria seguirá em frente?
Amanhã e no dia seguinte, pelo menos, ela continuará presa à dolorosa situação atual: um conflito em diversas camadas, com a população síria presa entre batalhas de potências globais e regionais. A ONU continuará organizando conferências que não trazem a paz, e o Conselho de Segurança continuará dividido demais para conter o banho de sangue.
Sete anos depois, alguns afirmam hoje que a única maneira realista de parar a guerra, evitar o ressurgimento dos jihadistas e permitir que o país siga em frente é reconhecer que Assad continuará no poder, com a ajuda do Irã e da Rússia, e efetivamente deixá-lo vencer.
Quando os canhões silenciarem, dizem eles, os outros problemas comensuráveis da Síria poderão ser abordados: a luta entre a Turquia e os curdos ao norte; a guerra na sombra entre Irã e Israel; e a reconstrução das comunidades destruídas para que os refugiados possam voltar.
Ceder tanto a Assad é, há muito, uma heresia para Washington e outras capitais ocidentais, onde os políticos acreditam que ele deve ser punido por sua brutalidade durante a guerra e prometeram não contribuir para a reconstrução enquanto ele continuar no poder.
Alguns alegam que se o Ocidente se recusar a investir os recursos necessários para determinar o futuro da Síria seus esforços para penalizar Assad vão agravar a vida da população em geral.
"Vocês não estão punindo Assad, estão punindo os pobres sírios", disse Joshua Landis, diretor do Centro para Estudos do Oriente Médio na Universidade de Oklahoma. "Se os objetivos dos EUA são o combate ao terrorismo, a estabilização e o retorno dos refugiados, tudo isso fracassará."
Trump ordenou os ataques aéreos de sábado (14), que foram realizados em conjunto com o Reino Unido e a França, para punir Assad por um aparente ataque químico em Duma uma semana antes.
Os ataques não pretendiam derrubar Assad, prejudicar os aliados russos e iranianos que apoiam suas tropas ou proteger os civis da violência. Na verdade, eles foram meticulosamente planejados e executados para não modificar a dinâmica geral do conflito e para impedir que os EUA fossem arrastados mais para dentro dele.
Isso frustrou os inimigos de Assad.
"Os ataques americanos não mudaram nada para os sírios", disse Osama Shoghari, um ativista contra o governo em Duma que está lutando para começar uma nova vida em uma cidade desconhecida a aproximadamente 300 quilômetros de sua casa. "Eles não mudaram nada no local."
A resistência do Ocidente a uma maior intervenção é boa notícia para a Rússia e o Irã, e é claro para Assad, que estava satisfeito no domingo, segundo um grupo de políticos russos que o visitaram.
"O presidente Assad tem uma atitude absolutamente positiva, um bom humor", disse Natalya Komarova, membro da delegação, segundo agências de notícias russas.
Mas em reconhecimento ao custo da guerra, outro visitante relatou que Assad disse que a reconstrução da Síria poderá custar US$ 400 bilhões.
Se a mensagem principal dos ataques foi que Assad não poderia usar armas químicas, uma mensagem secundária foi que o Ocidente o deixaria no poder, independentemente do que mais ele fizesse.
"Mesmo que isto seja uma dissuasão das armas químicas, deixa todo um arsenal de meios convencionais com os quais as pessoas podem ser mortas na Síria, com poucas repercussões reais", disse Sam Heller, um analista que estuda a situação no International Crisis Group. "Há todos os motivos para esperar que isso continuará."
Sete anos de conflitos deixaram a Síria dividida pelas potências mundiais, com os turcos administrando cidades no norte, os EUA trabalhando com milícias lideradas por curdos no leste, e a Rússia e o Irã ajudando Assad a derrotar bolsões de rebeldes em outros lugares.
Neste ponto, ninguém parece ter um plano realista para negociar uma paz duradoura entre essas forças, que pusesse a Síria novamente em condições estáveis o suficiente para permitir a volta de milhões de refugiados e o início da reconstrução. Muitos rejeitam a ideia de que Assad possa ter um papel significativo nesse processo.
"É muito míope e errado no meu entender", disse Maha Yahya, diretora do Centro Carnegie para o Oriente Médio, em Beirute. "Facilitar uma vitória para Assad é garantir que a Síria continuará o epicentro da instabilidade na região."
Pesquisa do centro descobriu que se Assad continuar no poder os refugiados sírios nos países vizinhos e na Europa serão desencorajados de retornar. "Eles não vão voltar enquanto Assad estiver no poder, porque eles não acreditam que haverá segurança e estabilidade se Assad estiver lá", disse Yahya.
A única solução, segundo ela, é um acordo entre a Rússia e os EUA de que outras potências, como Turquia e Irã, possam eventualmente ser envolvidas. Mas alcançar esse acordo exigiria intensos esforços diplomáticos, o que não interessa ao governo Trump.
Depois de anunciar os ataques de sábado, Trump pintou um retrato pessimista da capacidade dos EUA de efetuar mudanças no Oriente Médio.
"Nenhuma quantidade de sangue ou riqueza dos EUA poderá produzir paz e segurança duradouras no Oriente Médio", disse Trump. "É um lugar problemático. Tentaremos fazê-lo melhorar, mas é um lugar problemático."
Ele sugeriu que os aliados árabes poderiam ter um papel mais atuante, mencionando a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos, o Egito e Catar. Mas os dois primeiros estão mergulhados em uma guerra no Iêmen, e os três primeiros estão presos em uma dura disputa com o quarto, o que deixa impreciso como eles trabalhariam juntos para resolver a questão da Síria.
Antes dos ataques, Trump congelou US$ 200 milhões em ajuda para a estabilização da Síria e disse que queria trazer de volta os cerca de 2.000 soldados americanos hoje no leste da Síria.
Além de trabalhar com uma milícia conhecida como Forças Democráticas Sírias no combate ao EI, os EUA estão ajudando a restaurar áreas que foram recentemente recuperadas dos jihadistas, como a cidade de Raqqa.
Diante dos tremendos danos causados à cidade, é uma tarefa gigantesca, segundo Mustafa al-Abed, do Conselho Civil de Raqqa, que é apoiado pelos EUA. Entre as prioridades do grupo estão consertar as redes de água e eletricidade, limpar os detritos das ruas e restaurar as redes de irrigação para que os agricultores possam plantar.
Mas antes que isso aconteça e que os moradores possam voltar para suas casas, a cidade deve estar livre das muitas minas e armadilhas explosivas que os jihadistas implantaram antes de sua derrota.
"Elas estão por toda parte", disse Abed sobre as minas. "Em casas, carros, ruas. Não há um tamanho ou lugar normal. Estão em toda parte."
Ele não deu importância aos ataques de sábado, que na sua opinião foram precedidos de tantas ameaças de Trump que o governo sírio teve tempo de sobra para esvaziar prédios e esconder materiais importantes.
"Eles usaram todo tipo de arma", disse ele sobre as forças do governo sírio. "Por isso os ataques deviam ser fortes o suficiente para romper a coluna dorsal do regime."
A única coisa que impedia o governo, a Rússia e o Irã de retornar a esta parte do país era a presença de tropas americanas, disse Abed. Ele teme o que acontecerá se os EUA forem embora.
"Voltaremos a ser uma região de lutas, como antes", disse. "Voltaremos às lutas, medo e sangue."
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