"No dia 14 de maio, eu saí por aí Não tinha trabalho, nem casa, nem pra onde ir Levando a senzala na alma, subi a favela Pensando em um dia descer, mas eu nunca desci" Canção 14 de maio, de Antonio Jorge Portugal e Lázaro Jeronimo Ferreira, interpretada por Lazzo Matumbi A palavra abolição tem significados muito simples e objetivos no dicionário: total extinção, anulação. Em 13 de maio de 1888, a assinatura da Lei Áurea garantiu o fim formal do regime escravocrata, mas podemos dizer que não houve abolição de fato. Foi como podar uma árvore envenenada, mas deixar suas raízes sequeladas ainda se nutrindo. Três fatos noticiados só na última semana podem nos ajudar a entender melhor: Começamos pelo que talvez seja a ponta do iceberg. Mesmo que a escravidão tenha começado a ser "podada" anos antes da Lei Áurea - por exemplo, a Lei dos Sexagenários (1885) determinou que os escravizados com 60 anos ou mais deveriam ser livres e a Lei do Ventre Livre (1871) determinou que pessoas nascidas após o dia 28 de setembro de 1871 seriam livres -, os abolicionistas trabalharam muito para evitar ou reverter as tentativas de "re-escravização" de libertos. Até hoje, essas tentativas insistem. Dadas as particularidades históricas, só em 2022, 2.575 trabalhadores foram resgatados da escravidão contemporânea no Brasil - 83% negros, segundo o Ministério do Trabalho e Emprego. Em janeiro, os relatos de operações de resgate em vinícolas no Rio Grande do Sul citavam, inclusive, trabalhadores desmaiando por não ter o que comer. A fome no Brasil "tem cor", como bem lembrou o escritor Itamar Vieira Junior, vencedor do Prêmio Jabuti de 2020, nesta semana ao UOL Entrevista - em 2020, no contexto da pandemia da Covid-19, 65% dos lares comandados por pessoas pretas ou pardas conviviam com restrição de alimentos em algum nível. Apesar de mudanças positivas significativas impulsionadas por políticas públicas, uma pesquisa breve na internet mostra como a população negra está sempre entre os piores indicadores socioeconômicos do país. A ausência de um plano político que visasse a inserção do negro na sociedade como um indivíduo de direitos e deveres fez do 13 de Maio uma "mentira cívica", como bem disse Abdias do Nascimento, em discurso no Senado em 1998. "Foi assim que chegamos ao 13 de maio de 1888, quando negros de todo o país - pelo menos nas regiões atingidas pelo telégrafo - puderam comemorar com euforia a liberdade recém-adquirida, apenas para acordar no dia 14 com a enorme ressaca produzida por uma dúvida atroz: o que fazer com esse tipo de liberdade?" Abdias do Nascimento (1914 - 2011) O "tipo de liberdade" então conquistado também não dispensou pessoas negras das consequências culturais das ideias disseminadas durante as centenas de anos de escravidão. Os episódios de ódio têm relação direta com aquelas raízes contaminadas que o sistema escravocrata fez questão de não cortar, como a ideia de que pessoas não-brancas eram naturalmente inferiores às brancas. Fomos conduzidos a acreditar que a cor da pele define quem é bom e quem não é. O açoite e o grito de "odeio preto" são as provas concretas de que a escravidão como ideia permanece e impede o gozo da liberdade plena, aquela cujo significado é muito maior do que a assinatura em um papel. O passado já nos dava pistas de que a história cobraria o presente pela abolição inacabada. Leia mais: *** NAS TELAS... A série documental "Rainha Cleópatra", da Netflix, chegou à plataforma em meio a polêmicas: acadêmicos e autoridades do Egito têm reclamado da linha narrativa da produção, que representa Cleópatra como uma mulher negra. NAS 4 LINHAS... O Senado aprovou a Lei Geral do Esporte que, entre outras coisas, determina a adoção de medidas "para erradicar e reduzir as manifestações antidesportivas, como a violência, a corrupção, o racismo, a xenofobia, a homofobia, o sexismo". PUBLICIDADE | | |