Topo

Trabalhadores desmaiavam de fome e tinham desconto no salário, diz auditor

Marmita azeda, com formiga ou fria: acidente cortou dedos dos pés de adolescente que fazia teste em clube de futebol - Divulgação/MPT
Marmita azeda, com formiga ou fria: acidente cortou dedos dos pés de adolescente que fazia teste em clube de futebol Imagem: Divulgação/MPT

Do UOL, em Brasília

12/03/2023 04h00Atualizada em 12/03/2023 12h29

Trabalhadores resgatados em duas fazendas de arroz no Rio Grande do Sul em condições análogas à escravidão costumavam desmaiar de fome e sede, afirmou ao UOL o auditor fiscal do trabalho Vítor Ferreira. Sem condições de terminar a jornada, eles perdiam parte do salário.

É evidente que os desmaios aconteciam e que não era dado nenhum cuidado pelo explorador da mão de obra. Se ele [o trabalhador] não cumprir a jornada, seja por qualquer motivo, não recebe [a diária]."
Vítor Ferreira, auditor do trabalho

A Polícia Federal, o MTE (Ministério do Trabalho e Emprego) e o MPT (Ministério Público do Trabalho) iniciaram uma operação na última sexta-feira (11) em duas fazendas a cerca de 50 quilômetros da área urbana de Uruguaiana (RS).

Até o momento, foram resgatados 56 trabalhadores em condições degradantes, incluindo dez adolescentes. A operação segue em andamento em busca de outras pessoas que trabalharam no local.

Os investigadores querem saber se os donos da fazenda —- as estâncias Santa Adelaide e São Joaquim —- ou a empresa que comprou a produção de arroz eram os verdadeiros empregadores dos lavradores rurais.

Um "gato" —agenciador de trabalhadores— foi preso. Em depoimento à Polícia Federal, ele ficou calado. Seu nome não foi divulgado, assim como o dos donos das fazendas e da empresa.

O auditor Vítor Ferreira disse que, quando forem identificados, os verdadeiros empregadores serão punidos. Eles terão de arcar com dívidas e multas trabalhistas e administrativas e responder criminalmente.

Ferreira afirmou à reportagem que a situação era "muito grave", diferente do que auditores se habituaram a ver nesse tipo de fiscalização. Não havia água, banheiros ou mesmo um local para se proteger do sol quente num clima que, a esta época, chega a 40ºC em Uruguaiana.

O procurador do trabalho Hermano Domingues destacou que, nos depoimentos, os trabalhadores disseram que os gatos vendiam drogas aos menores. Os valores eram descontados dos salários.

Sonhava jogar futebol e perdeu dois dedos do pé

Um adolescente de 14 anos, que tinha o sonho de se tornar jogador de futebol, trabalhava sem botina, um equipamento de proteção. O garoto sofreu um acidente de trabalho com um facão e teve dois dedos do pé atingidos.

Uma pessoa que estava só iniciando a vida, o sonho era ser jogador de futebol, já tinha feito testes para clubes de futebol... Perdeu o movimento dos pés, e talvez agora não vai mais jogar bola."
Hermano Domingues, procurador do Trabalho

O que mais os investigadores encontraram:

  • Sem local para guardar a comida, as mochilas com marmitas azedavam na roça. Os lavradores dividiam entre si o resto de alimentos que ainda não tinham estragado;
  • Formigas atacavam os alimentos dos trabalhadores enquanto eles estavam na roça;
  • Comida fria. Não havia onde aquecer os alimentos;
  • Agrotóxicos nas mãos de adolescentes. Eles retiravam uma praga da plantação, chamada de "arroz vermelho", manuseando agrotóxico;
  • Parte do grupo retirava a praga com facas de cozinha, em vez de foices;
  • Faltavam equipamentos de proteção, como botas, foices, chapéus, protetores solares;
  • As contratações eram feitas sem documentos e registro oficial;
  • Adolescentes trabalhavam enquanto fumavam maconha, fornecida pelos "gatos";
  • Não havia primeiros socorros e nem uma pessoa a quem recorrer em caso de acidentes de trabalho ou qualquer eventualidade em uma área rural grande e longe da cidade.

A sede, a fome, a falta de descanso, falta de banheiro e a falta de alguém a quem pedir ajuda gera condição degradante, e é contra isso que lutamos"
Vítor Ferreira, auditor do trabalho

Os nomes dos "gatos", dos donos das fazendas e da empresa que comprou a produção de arroz não foram revelados. Em caso de manifestação deles, o texto será atualizado.

Denúncias de trabalho escravo podem ser feitas de forma sigilosa no Sistema Ipê, lançado em 2020 pela Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Dados oficiais sobre o combate ao trabalho escravo estão disponíveis no Radar do Trabalho Escravo da SIT.

Arrozeiros negam trabalho escravo

Em nota enviada ao site Zero Hora, de Porto Alegre, a Federarroz (Federação das Associações de Arrozeiros do Estado do Rio Grande do Sul "ressalta que estará acompanhando as apurações decorrentes do caso concreto, de modo a colaborar com seus devidos esclarecimentos".

A entidade ainda diz que "o possível não cumprimento de regras trabalhistas vigentes não culminam, necessariamente, na possibilidade de enquadramento dos fatos como 'análogo a escravidão', vez que a legislação e a jurisprudência pátria exigem o preenchimento de requisitos específicos para a configuração efetiva da previsão legal e, por conseguinte, para punição dos respectivos responsáveis".