Novas comidas gourmet são uma forma cafona de distinção social
A gastronomia tem hoje, provavelmente, o mesmo peso que atribuímos aos concertos ou às exposições de arte. Sem exagero e do mesmo modo, tanto quanto “parecer” intelectual tinha e tem algum apelo em determinados nichos sociais, ser “entendido” em artes da cozinha e do serviço do vinho, por exemplo, também é um elemento de distinção social.
Ingredientes ou produtos têm sido requalificados como gourmet. Veja o caso de marcadores culturais como a cachaça, que ganha distinção com o selo de premium e deixa de ser associada apenas aos consumidores mais populares. De forma análoga, frequentar determinado restaurante, pagar por isso, observar quem o frequenta e, principalmente, ser visto, é uma experiência de significado muito semelhante ao de ir a uma ópera no século 19.
O lado risível desse processo é a necessidade de muitos em estabelecer a diferença. Por exemplo, o consumo dos produtos da terra não é enaltecido pelos seus valores intrínsecos, como tradição, história ou território - ou terroir, se preferir -, mas por atributos que podem nos distinguir perante a outros consumidores.
A indústria parece ter percebido isso muito rapidamente, destacando determinadas qualidades (legítimas ou não), mas sempre mirando a sanha de consumidores ávidos por se destacarem em seu meio social. Muitas vezes, pelo consumo de produtos que se autodenominam gourmet.
Outros víveres apontam para o “comfort food” de forma exagerada. Pipocas e brigadeiros, que sempre tiveram espaço em nossa memória afetiva, agora são gourmets e marcam presença em festas vips.
O mesmo se aplica às varandas, que agora são “gourmets” e ao fenômeno recente das cozinhas que norteiam projetos de arquitetura, pois cresce a percepção de que a cozinha é o elemento principal da casa.
Tudo isso pode ser muito cafona, e nos coloca em saias justas quando refletimos sobre o que torna um produto gourmet ou o que significa a palavra gourmet para nós.
Entre a nascente burguesia brasileira, essa expressão começou a fazer mais sentido nas décadas de 1960 e 1970, quando começam a aparecer chefs franceses representantes da nouvelle cuisine. Ele começaram a revitalizar e popularizar a gastronomia francesa, menos codificada, mais livre e, principalmente, calcada na excelência dos ingredientes.
Curiosamente, o que de mais importante esses chefs nos legaram, para além das técnicas gastronômicas, foi a valorização de nossos alimentos típicos, seu frescor, sua versatilidade. E mais: fazer com que as pessoas se atentem à origem dos alimentos. Cuidados que favorecem não só a saúde e a qualidade de vida, como também a ideia poderosa e legítima de que alimento é cultura. Por que precisamos que estrangeiros nos digam isso?
O movimento Slow Food é um dos inúmeros exemplos de esforços nesse sentido. Nele, algumas ideias se destacam: o bom -qualidades organolépticas dos alimentos-, o limpo -produtos orgânicos, sazonais e livres do uso de agrotóxicos (somos campeões mundiais no consumo desses venenos)-, e o justo - defende o agricultor, valorizando seu trabalho.
Coincidentemente, em uma justa homenagem, 2014 é o Ano Internacional da Agricultura Familiar, e um dos principais eventos do de gastronomia do país, o Semana Mesa São Paulo, terá como tema a conexão entre o produtor familiar e a cozinha.
Penso que está na hora de valorizarmos determinados procedimentos culinários e produtos da terra. Alimentos e bebidas que sempre foram nobres quanto ao cuidado com que são feitos, contam com ingredientes de excelência e, principalmente, que são identificados com a nossa cultura. Tais produtos são gastronômicos, independente da nossa voracidade por rótulos. Nossos chefs têm trabalhado arduamente nisto, precisamos dar visibilidade a essas iniciativas.
O termo gourmet pode também significar a valorização da denominação de origem, coisa que os europeus há muito já fazem. É o reconhecimento da importância da produção artesanal e de excelência, que começa a ser certificada e destaca aquele que efetivamente produz esse tipo de alimento, muitas vezes, o pequeno produtor.
Pagar mais por tais produtos pode trazer outro tipo de satisfação: dar sustentabilidade econômica, preservar sabores, difundir culturas e defender biodiversidades. Há um enorme caminho a trilhar para que isto se efetive amplamente.
Voltando ao meu exemplo inicial, a cachaça. Quando Lima Barreto (ou um de seus personagens), no início do século passado pedia uma “Paraty”, ele não estava se referindo a uma cachaça gourmet ou prime, mas à tradição de excelência na produção de uma cachaça artesanal. Fruto da simbiose entre terra, homem e seu saber fazer.
Em outras palavras, à tradição dos antigos engenhos de cana-de-açúcar, ao clima daquela região específica e ao conhecimento acumulado ao longo de séculos de produção desse destilado legitimamente brasileiro. Quer expressão melhor daquilo que hoje identificamos como gourmet e expressão autêntica de seu terroir?
Nosso famoso literato -crítico da república velha e autor de obras como “Os Bruzundangas” e “Triste Fim de Policarpo Quaresma”- queria na realidade pedir uma cachaça, mas que tinha o gosto da nossa história, tradição e território. Enfim, tudo isso que desde aquela época já era considerado chic!
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