Portar arma não aumenta chances de defesa em caso de assalto
Em meio aos debates acerca da revogação do Estatuto do Desarmamento é importante frisar a enorme lacuna de informações com que as discussões são travadas no campo da segurança pública no Brasil. Só muito recentemente é que o país tem acordado para a relevância de se dispor de sistemas de informação confiáveis e transparentes enquanto ferramentas de planejamento e de prestação de contas das instituições da área.
Muito do que se defende como solução para os graves e agudos problemas da violência e da segurança não são objeto de diagnósticos robustos e de planejamento criterioso. São, em verdade, a tradução de uma forte disputa ideológica e impressionista pelo significado de lei, ordem e segurança pública no país.
Desse modo, no momento em que a Câmara dos Deputados se prepara para colocar o projeto de revogação do Estatuto em votação na Comissão Especial, vale resgatar e revisitar alguns argumentos do passado e, sobretudo, algumas evidências disponíveis, que provam que hoje no Brasil há uma distância muito grande entre o que está sendo propugnado como solução e o que de fato ocorre no cotidiano e na vida da população.
Enquanto o medo é alimentado, as soluções mais efetivas e eficientes não são construídas.
Para se ter uma ideia, no início do ano de 2000, pesquisa intitulada “Também morre quem atira”, por mim coordenada no Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e realizada a pedido da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, concluiu que a parcela da população da cidade de São Paulo que possuía arma de fogo corria um risco 56% superior de ser vítima fatal numa situação de roubo do que o restante da população.
Dito de outra forma, se a média de armas de fogo em circulação na cidade naquele momento era de 1,8 armas para cada grupo de 10 habitantes, a média de armas entre as vítimas de roubos seguidos de morte (latrocínios) era de 2,84 armas para cada 10 habitantes. E, corroborando este maior risco, a pesquisa observou que, em seu grupo controle, que as vítimas de tentativas de latrocínio conseguiram evitar um desfecho fatal em apenas 13,8% dos casos.
Por estes dados, que tiveram por fonte os registros de ocorrência policial de São Paulo, o argumento da legítima defesa é falacioso e diz mais sobre as opções institucionais e preferências pessoais do que descreve um fato de realidade. E, notem, o período analisado é anterior ao Estatuto do Desarmamento - ou seja, naquele período o país autorizava sua população a andar armada.
Nem por isso o risco era menor. Ele não é subjetivo: ele é real e imediato. E não está circunscrito exclusivamente à população “indefesa”. Dados publicados no Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública dão conta de informar que os policiais do país correm três vezes mais chances de morrerem do que a média da população.
E isso ocorre com quem lida com armas de fogo todos os dias e tem preparo técnico para manuseá-la. Outra confusão ideológica é afirmar que o Estatuto proibiu a compra de armas. Porém, o que o Estatuto fez foi proibir a circulação, e não a compra. As pessoas que atendem aos requisitos da lei podem continuar a comprar armas.
E os dados corroboram esta afirmação. Entre 2004 e 2014, como exemplo, foram mais de 120 mil registros concedidos a civis pelo Departamento de Polícia Federal e o número está crescendo. É falso, portanto, dizer que o cidadão não tem acesso à arma, ou que o referendo de 2005 não está sendo respeitado.
Em síntese, o momento político do Brasil exige um cuidado redobrado com os falsos profetas e com aqueles que bradam de suas tribunas verdades absolutas, estereótipos e intolerâncias. São estas pessoas que não querem ouvir o contraditório e não fazem questão de qualificar o debate e as políticas públicas com dados. Até porque, pelos dados e pesquisas disponíveis, arma de fogo representa um risco de morte maior e não há como negar esta realidade.
Podemos assumir que a sociedade pode legitimamente assumir que está disposta a correr esse maior risco, porém não podemos aceitar a sua imposição no grito. O fato é que não podemos incentivar a legislação do pânico e, acima de tudo, temos que compreender que a violência exige de todos um esforço de integração e articulação que transcende em muito interesses particulares/corporativos. Na dúvida, vale dar uma chance à vida.
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