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Políticas de desarmamento não reduziram homicídios no Brasil

Especial para o UOL

06/04/2016 06h00

Na área econômica, há um conceito que exprime a tese de que a arrecadação tributária instituída por um governo, qualquer que seja, possui um limite máximo de eficácia. Ou seja, um ponto extremo no qual a carga de impostos representa o ápice arrecadatório. A partir dele, se houver aumento na tributação, o volume arrecadado não cresce, mas, ao contrário, é reduzido.

Isso ocorre porque o pico de eficiência em arrecadação corresponde ao ponto de saturação da capacidade contributiva da sociedade, que, dele em diante, simplesmente não suporta pagar mais impostos. A teoria é representada pela chamada “Curva de Laffer”, uma parábola que tem seu ponto mais alto correspondendo à máxima possibilidade de retorno tributário. A representação é amplamente conhecida na economia e sua aplicação também pode ser projetada para as relações de mercado, definindo preços máximos de produtos em relação à demanda, como mediadora da chamada relação entre oferta e procura.

Há, porém, outro campo em que as sociedades experimentam uma saturação de ocorrências de determinado fato, mas que segue sendo negligenciado sistematicamente em nosso país: a criminalidade homicida.

As organizações sociais espalhadas pelo mundo se assentam em diferentes características estruturantes. Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), sistema de investigação policial e sistema jurídico-punitivo – especialmente a legislação penal - são exemplos desses pilares sociais, que determinam como uma nação se comporta quanto às relações entre seus cidadãos e entre estes e o Estado –isto é, como fica a dinâmica social a partir desses elementos básicos. Se eles se estabilizam, os indicadores ali colhidos (pobreza, inflação, criminalidade etc.) refletem o resultado de sua atuação conjunta.

O indicador primordial de criminalidade utilizado mundialmente, a taxa de homicídios, não foge a essa realidade, sendo determinado pela atuação concatenada dos preditos fatores, os quais estabelecem sua variação até o momento em que há a estabilidade, tanto nos patamares mais altos, como nos mais baixos. Esse movimento é perceptível em todas as nações sobre as quais são estudadas as taxas de homicídio.

Nos Estados Unidos, por exemplo, a primeira metade da década de 1990 representou o ápice recente da criminalidade no país, época em que, com forte atuação de gangues ligadas ao tráfico de drogas, a taxa de homicídios alcançou 9/100 mil habitantes (1994), levando à adoção de políticas repressivas mais rígidas, coroadas pela “Tolerância Zero”, de Nova York. A partir de então, os elementos estruturantes dos EUA (nesse momento alterados) passaram a conduzir o índice numa redução sequencial, trazendo-o para a casa dos 4,5/100 mil (2013), patamar em que se estabilizou.

No extremo oposto, Honduras, um dos países com maior taxa de homicídios em todo o planeta, saiu de um indicador de 51/100 mil (2000) para espantosos 91,8/100 mil (2011), quando atingiu seu ápice, passando a variar, ainda que timidamente, para baixo (84,3/100 mil em 2013). A saturação homicida hondurenha, portanto, foi ali alcançada e a parábola iniciou sua descendente.

Quadro criminal brasileiro

O exato mesmo fenômeno se repete no Brasil, sendo claramente identificado com a promulgação, em 1988, da Constituição Federal. A norma, sucedendo um período de regime militar e o tomando como contraponto, inaugurou uma era de garantismo penal, com a coroação de preceitos como a presunção de inocência, a prisão como medida extrema e a regra de que os réus respondem aos processos em liberdade. Com essas premissas, se, por um lado, o processo penal se tornou mais rígido, por outro, as falhas em sua aplicação acabam protegendo demasiadamente os criminosos, que, em verdade, a pretexto de não serem injustamente punidos, não raro acabam sem punição nenhuma.

Exatamente com o advento da Constituição, a taxa nacional de homicídios passou a ascender. O indicador, que oscilava entre 15 e 17 por 100 mil desde 1984, subiu imediatamente após a Carta Magna entrar em vigor, saltando de 16,8/100 mil (1988) para 22,2/100 mil em apenas dois anos (1990), um incremento de 32%. A crescente da parábola se estabeleceu até 2001, quando alcançou 27,8/100 mil e, desde então, se estabilizou, oscilando naturalmente 1,5/100 mil para mais ou para menos até 2013, último ano completamente integrado ao Datasus, com 28,5 homicídios a cada 100 mil habitantes.

O atual quadro criminal homicida brasileiro, portanto, é fruto direto da dinâmica estruturante da sociedade, a exemplo do que se vê nos Estados Unidos, em Honduras ou em qualquer outro país que se queira tomar por exemplo. Para a atual realidade brasileira, assim, a taxa “natural” de homicídios é por volta de 28/100 mil, tal como alcançada em 2001. É a ela que conduzem os nossos atuais pilares sociais.

Justamente por isso, torna-se um absoluto equívoco vincular variações quantitativas homicidas a aspectos pontuais de governo, como se tenta, insistentemente, com as alegações de que políticas de desarmamento promoveram redução de homicídios no Brasil. Não promoveram.

O que vivemos hoje, de acordo com todos os dados oficiais, ainda é a parte mais ascendente do que se poderia chamar de “Curva de Laffer Homicida”, que alcançou o ápice da parábola em 2001, muito antes de o Estatuto do Desarmamento, vigente desde 2004, produzir qualquer efeito.

Admitir o oposto, aliás, nos conduziria à conclusão de que, se o Estatuto do Desarmamento salvou vidas, a Constituição Federal é a norma mais assassina já introduzida no país. Afinal, foi imediatamente após ela que as taxas de homicídio dispararam.

O fato, porém, é que o fenômeno da criminalidade homicida precisa ser analisado com profundidade e técnica, e não a partir de uma tese prévia que apenas se busca comprovar. A diminuição do nosso quadro de violência letal não está em leis midiáticas, apoiadas por entusiasmados sociólogos; ela depende de reformas estruturais, especialmente em nosso sistema jurídico-penal, para que seja eliminada a impunidade que nos assola. É nela que, sem qualquer dúvida, reside a raiz da nossa epidemia de assassinatos.

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