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Cuba: Regras repressivas para médicos que trabalham no exterior

22.mar.20 - Médicos e enfermeiros cubanos chegam à região de Milão, na Itália, para trabalhar durante a pandemia de covi-19 - Daniele Mascolo/Reuters
22.mar.20 - Médicos e enfermeiros cubanos chegam à região de Milão, na Itália, para trabalhar durante a pandemia de covi-19 Imagem: Daniele Mascolo/Reuters

Human Rights Watch

23/07/2020 16h50Atualizada em 23/07/2020 16h52

O governo cubano impôs regras draconianas aos médicos enviados em missões médicas em todo o mundo, regras que violam seus direitos fundamentais, disse hoje a ONG de direitos humanos Human Rights Watch. Os governos que contam com ajuda de profissionais de saúde cubanos em sua resposta à pandemia de covid-19 devem pressionar as autoridades cubanas a modificar as leis e regras aplicáveis que violam seu direito de privacidade, liberdade de expressão e associação, liberdade e de movimento, entre outros.

Desde março, Cuba já enviou aproximadamente 1.500 profissionais de saúde para todo o mundo para ajuda ao combate à pandemia de covid-19, que se juntaram aos aproximadamente 30 mil profissionais de saúde cubanos já enviados ao exterior. As regras do governo cubano estipulam que os trabalhadores devem ser disciplinados por fazerem "amizade" com pessoas que tenham "posições hostis ou contrárias à revolução cubana". Os profissionais de saúde também podem enfrentar penas criminais caso "abandonem" seu trabalho.

"Os médicos cubanos empregados na resposta à pandemia de covid-19 prestam serviços valiosos a muitas comunidades, mas em detrimento de suas liberdades mais básicas", disse José Miguel Vivanco, diretor para as Américas da Human Rights Watch. "Os governos interessados em receber apoio dos médicos cubanos devem pressionar o governo cubano a mudar esse sistema orwelliano, que dita com quem seus médicos podem conviver, se apaixonar ou conversar."

Segundo o governo cubano, ao longo dos últimos 60 anos, Cuba enviou mais de 400 mil profissionais de saúde a 164 países para ajudar a enfrentar crises de curto prazo, desastres naturais e, atualmente, a pandemia de covid-19. Desde março de 2020, o governo cubano enviou vários contingentes de pessoal médico em apoio aos sistemas de saúde locais em mais de 20 países, incluindo vários na América Latina.

Desde sua primeira missão médica à Argélia em 1963, Cuba elaborou regras repressivas que regulam as vidas daqueles enviados ao exterior. As regras restringem severamente a liberdade de expressão, associação, movimento e a privacidade dos profissionais de saúde.

Cuba regula até mesmo os aspectos mais mundanos das vidas dos profissionais de saúde cubanos em missão, de formas que violam seus direitos de liberdade de associação. Segundo a Resolução 168 de 2010, emitida pelo Ministério do Comércio Exterior e Investimento Estrangeiro, é considerada "ofensa disciplinar" manter "relacionamento" com qualquer pessoa cuja "ações não sejam consistentes com os princípios e valores da sociedade cubana", assim como ter "amizade ou estabelecer qualquer outro elo" com dissidentes cubanos, pessoas que tenham "posições hostis ou contrárias à revolução cubana", ou que "promovam um modo de vida contrário aos princípios que um colaborador cubano no exterior deve representar".

Viver com pessoas "não autorizadas" também é uma ofensa disciplinar. Pessoal enviado ao exterior deve informar todos os "relacionamentos românticos" aos seus supervisores imediatos.

As estipulações vagas da Resolução 168 restringem a liberdade de movimento dos profissionais de saúde. A resolução transforma em infração "visita frequente a lugares que mancham o prestígio (do médico)", assim como "visita a lugares que, dadas suas características, são propensos a perturbações da ordem pública". Os profissionais de saúde também precisam de "autorização" para "participar de atos públicos de natureza política ou social".

A liberdade de expressão deles também é seriamente limitada por regulações amplas e vagas que são desnecessárias e desproporcionais a qualquer meta legítima de governo. Segundo a Resolução 168, os médicos precisam de "autorização e instruções" para "expressar opiniões" à mídia sobre "situações internas no local de trabalho" ou que "coloquem em risco a colaboração cubana". Também é uma violação "disseminar ou propagar opiniões ou rumores que minem o moral ou prestígio do grupo ou de quaisquer de seus membros".

As sanções por violação das regras variam de confisco dos salários ao retorno da pessoa para Cuba. Segundo o Código Penal de Cuba, pessoal médico que "abandona" seu trabalho pode enfrentar processo criminal e prisão por até oito anos, uma punição extremamente desproporcional, que mina o direito dos trabalhadores à liberdade.

A Human Rights Watch não conseguiu determinar o quanto os profissionais de saúde cubanos violaram as regras e a lei, ou se o governo cubano aplicou as sanções criminais ou disciplinares contra eles. Apesar das penas criminais aparentemente serem raramente aplicadas, declarações dos médicos analisadas pela Human Rights Watch sugerem que medidas disciplinares são mais comuns.

As leis cubanas restringem severamente o direito dos médicos e de outros cubanos de deixarem seu próprio país. Também restringe o acesso a passaportes comuns, e os profissionais de saúde em missão recebem os chamados passaportes "oficiais", válidos apenas pela duração da missão.

Os profissionais de saúde são considerados população "regulada" e precisam obter autorização especial para sair do país antes de receberem um passaporte, mesmo que se desliguem de suas posições no Sistema Nacional de Saúde. A lei cubana tenta justificar essas restrições com base na necessidade de "preservar a força de trabalho de qualificada para o desenvolvimento econômico, social, técnico e científico do país", mas as restrições severas, que se aplicam indefinidamente, são desproporcionais para essa meta.

Um decreto de 2012 dá amplos poderes às autoridades para conceder ou negar aos profissionais de saúde autorização para deixar o país. Segundo o decreto, as autoridades não levarão "mais que cinco anos" para processar o pedido de um profissional de saúde para viver no exterior. Segundo a lei cubana, a longa espera é supostamente justificada pela necessidade de "treinar o substituto (do profissional de saúde)".

Os profissionais de saúde cubanos também relatam que aqueles que "abandonam" as missões estão sujeitos a ter sua entrada em Cuba proibida por oito anos. A proibição não está estabelecida claramente na legislação cubana. Mas a lei de imigração proíbe a entrada de pessoas consideradas "indesejáveis" ou que tenham "organizado, estimulado, realizado ou participado de ações hostis contra as bases políticas, econômicas e sociais do Estado cubano". A lei, que viola o direito de uma pessoa de entrar em seu próprio país, se aplica a "qualquer um", incluindo pessoas de nacionalidade cubana.

Em novembro de 2019, relatores especiais das Nações Unidas para formas contemporâneas de escravidão, incluindo suas causas e consequências, assim para tráfico de pessoas, especialmente de mulheres e crianças, requisitaram ao governo cubano informações sobre as condições de trabalho nas missões médicas cubanas. Os relatores disseram que as condições de trabalho relatadas a eles, incluindo de fontes primárias, "podem representar trabalhos forçados".

Eles relataram que muitos médicos sentem-se pressionados a participar das missões e temem retaliação caso não o façam, e que os médicos enfrentam "horas de trabalho excessivas", acesso limitado a férias e salários, e enfrentam ameaças oficiais assim como restrições aos direitos de privacidade e liberdade de expressão. Em uma resposta em janeiro de 2020, analisada pela Human Rights Watch, o governo cubano negou as alegações, dizendo que os relatores foram "usados para fomentar campanhas espúrias (...) pelo governo dos Estados Unidos".

O grupo de direitos Defensores de Prisioneiros reuniu declarações, analisadas pela Human Rights Watch, de dezenas de profissionais de saúde que participaram de missões anteriores à pandemia de covid-19, entre 2001 e 2018. Muitos disseram que se juntaram ao programa por temerem retaliação por parte das autoridades cubanas. Outros disseram que participaram na esperança de conseguir sair do país ou ter acesso a alimentos, como carne, que não podem comprar com seus salários em Cuba.

Os direitos de privacidade, liberdade de expressão e associação, liberdade e movimento são protegidos pelo Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, outros tratados e pela lei internacional. A grande maioria dos países que recebem os médicos cubanos ratificou o Pacto. Cuba assinou o Pacto, porém não o ratificou. Trabalhos forçados também são proibidos segundo as Convenções 29 e 105 da Organização Internacional do Trabalho, ratificadas por Cuba e pela maioria dos Estados que recebem os profissionais de saúde cubanos. Vários países que recebem as missões cubanas ratificaram o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que reconhece o direito a condições de trabalho justas e favoráveis, assim como a um padrão de vida adequado. A Declaração Universal dos Direitos Humanos também estipula que todos "têm o direito de deixar qualquer país", incluindo o seu próprio, "e de retornar" ao seu país.

Os países que recebem os profissionais de saúde cubanos têm obrigações de direitos humanos para com todas as pessoas em seu território, o que inclui os profissionais de saúde cubanos, e devem assegurar que seus acordos com o governo cubano incluam proteções aos direitos dos trabalhadores, disse a Human Rights Watch.

"Os governos que aceitam assistência cubana, que inclui condições abusivas impostas por Cuba, correm o risco de se tornarem cúmplices das violações de direitos humanos" disse Vivanco. "Cuba pode não estar disposta a proteger seus profissionais de saúde, mas outros governos devem evitar o apoio à exploração deles."