É impressionante: com muita frequência o Brasil se depara com notícias em que imóveis estão no centro de reportagens e investigações sobre suspeitas de corrupção e lavagem de dinheiro. E os nomes envolvidos nessas notícias preenchem todos os espectros político-ideológicos. O caso mais recente é a compra, por parte do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), de uma mansão de R$ 6 milhões em Brasília, caso revelado pelo jornalista Claudio Dantas.
Ainda a respeito da família Bolsonaro, é de conhecimento público a existência de 14 imóveis em nome da segunda esposa do presidente Jair Bolsonaro, Ana Cristina Siqueira Valle, adquiridos no período em que os dois estiveram juntos. Cinco dos quais comprados com dinheiro vivo, segundo reportagem de Juliana Dal Piva e Chico Otavio.
Outra notícia de 2021 envolvendo políticos, imóveis e suspeitas de lavagem de dinheiro, relaciona-se a um imóvel localizado na França que está em nome de uma offshore registrada no paraíso fiscal europeu de Luxemburgo. O político envolvido aqui é o deputado Aécio Neves e ex-governador de Minas Gerais e ex-presidenciável, cuja mãe é a beneficiária final da offshore de Luxemburgo, segundo reportagem de Allan de Abreu e outros.
Além disso, temos o patrimônio imobiliário de R$ 2 milhões em nome do filho pequeno do ex-presidente Michel Temer, caso relevado por José Roberto de Toledo e Daniel Bramatti em 2016, quando o menino tinha apenas sete anos. E não podemos nos esquecer dos notórios casos do sítio e do duplex atribuídos ao ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva.
Aliás, a primeira condenação no âmbito da operação Lava Jato, em maio de 2015, também envolveu um imóvel: no caso, um apartamento de luxo em Ipanema, no Rio. O ex-diretor da Petrobras Nestor Cerveró teria adquirido o imóvel por meio de uma empresa de fachada. Segundo os autos, a empresa em nome da qual o imóvel foi registrado era uma subsidiária de uma pessoa jurídica registrada no Uruguai, não tinha funcionários, nem sede e nunca fez qualquer operação no Brasil - exceto a compra da cobertura à rua Nascimento Silva, na capital fluminense.
A "grande corrupção" e o setor imobiliário
Um dos principais incentivos para a prática da chamada "grande corrupção" — definida pela Transparência Internacional como "abuso de altos níveis de poder, beneficiando a poucos às custas de muitos" — é a facilidade com que volumes estratosféricos de dinheiro obtidos ilegalmente são inseridos no mercado formal. E uma das formas mais atraentes para se fazer essa operação é na compra de imóveis.
Por algumas razões: primeiro porque se trata de um ativo que pode trazer rendimentos futuros, tanto via especulação como via aluguel. Segundo, porque os valores são quase sempre auto declaratórios, permitindo assim que se declare um valor muito abaixo ou (muito acima) do realmente praticado. Por fim, há o chamado instrumento particular, privado, de compra e venda. Ora, esse instrumento está em desacordo com a ideia de que as escrituras devem ser lavradas em cartório público. Além de tudo isso, o patrimônio imobiliário pode ser registrado em nome de empresas, dificultando assim o acesso ao real proprietário.
Essas empresas, embora eventualmente abertas no Brasil, com documentos registrados em Junta Comercial, podem ser, por sua vez, controladas por chamadas "empresas offshore", que são arranjos corporativos secretos baseados nos assim chamados "paraísos fiscais". Tal mecanismo é atraente para o dinheiro ilícito por uma única razão: o segredo. Quando se tem muito dinheiro, abre-se em 10 minutos uma "empresa" numa jurisdição tida como "paraíso fiscal" e, assim, o endinheirado ganha uma espécie de máscara, podendo realizar operações discretamente em diversos países uma vez que o nome do verdadeiro beneficiário dessa estrutura jurídica permanece no anonimato.
Evidentemente a ocultação de patrimônio imobiliário, o registro de venda de imóveis por meio de instrumento particular e não público, o uso de offshores, o uso de dinheiro em espécie - tudo isso conta com uma cadeia de fornecedores que também deve ser responsabilizada. Contadores, advogados, bancos, imobiliárias, cartórios - todos devem fornecer informações completas e tempestivas a nossa unidade de inteligência financeira e devem ser orientados a não ajudar em operações de lavagem de dinheiro, sob o risco de serem arrolados como cúmplices.
Transparência
Outra medida eficaz seria aumentar exponencialmente a transparência, tanto das transações imobiliárias como da propriedade em si. Em 2016, a cidade de São Paulo passou a publicar, em formato aberto, os dados completos do cadastro do IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano), incluindo-se os nomes dos proprietários. Várias cidades no mundo disponibilizam publicamente, na internet, os dados de transação de venda de imóveis de seus territórios - afinal, a escritura de compra e venda é pública.
A disponibilidade dessas informações permite não apenas prevenir e detectar atos de lavagem de dinheiro como poderiam ajudar a desenhar programas mais justos de impostos sobre a propriedade urbana - em tempos de restrição orçamentária, a arrecadação justa e eficaz do IPTU ajudaria muitos municípios com dificuldades fiscais. Uma outra vantagem seria fornecer mais dados empíricos para ajudar urbanistas a planejarem melhor o desenho das nossas cidades em termos de uso da terra urbana - o que poderia ajudar em políticas para mitigar o déficit habitacional. O lema "fique em casa" não faz sentido para quem não tem uma.
A transparência não é uma panaceia e não se espera que a disponibilidade de mais informações venha a eliminar a lavagem de dinheiro no setor imobiliário automaticamente. Mas certamente a transparência nos dados de propriedade e de transação imobiliária dificultará que o espaço urbano seja utilizado para lavar dinheiro ilícito, ajudará no desenho de programas de justiça tributária e ainda apoiará a elaboração de estudos e de políticas públicas voltadas para construir cidades onde o espaço urbano seja menos predador, mais democrático e mais inclusivo.
Estamos em uma época em que gestores locais precisam tomar decisões com alto custo político, mas com benefícios evidentes e externalidades positivas. Abrir dados de propriedade imobiliária pode trazer muitos benefícios futuros, no campo da integridade, da justiça tributária, da responsabilidade fiscal e do planejamento urbano.
*Fabiano Angélico é consultor do Banco Mundial em projetos de corrupção transnacional. É mestre e doutorando em Administração Pública e Governo (FGV EAESP), tem especialização em Transparência, Accountability e Combate à Corrupção (Faculdade de Direito - Universidade do Chile) e graduação em jornalismo (Fafich/UFMG). Escreveu o livro "Lei de Acesso à Informação: reforço ao controle democrático" (2015).
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