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OPINIÃO

Doria ignora urgência climática e quer rifar parques no Vale do Ribeira

Prestes a deixar o cargo para se lançar à campanha presidencial, o governador de São Paulo João Doria (PSDB) pretende, de uma vez só, promover três descalabros: conceder à iniciativa privada uma das maiores áreas verdes do estado; permitir a expulsão de algumas das mais tradicionais comunidades quilombolas; e ainda se alinhar a uma ação do presidente Jair Bolsonaro para permitir a empresários internacionais explorar cavernas e gerir parques. Diante da urgência climática, não é mais possível falar em uma ação deste tipo sem falar em racismo ambiental.

O governo paulista disponibilizou o Petar (Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira) para investidores internacionais, em uma chamada pública, para a concessão de livre exploração comercial e transferência posse direta da terra, ou seja, o pleno poder e domínio da propriedade, por 30 anos. O leilão está previsto para acontecer no final de março.

O Petar é um patrimônio natural reconhecido pela UNESCO (1991), e está localizado no extremo sul do estado, na região do Vale do Ribeira, onde fica a maior faixa contínua de Mata Atlântica do Brasil. O processo foi feito "a toque de caixa" durante a pandemia, excluindo os monitores e a população local, desrespeitando o direito de consulta das comunidades tradicionais e quilombolas (OIT 169), entre elas, Ribeirão dos Camargos, Bombas, Sítio Novo e Caximba, além de não ter realizado a apresentação de estudos técnicos de impacto socioambiental e econômico na região.

É inacreditável observar que o Governo do Estado de São Paulo, que tem o maior PIB do Brasil, vá contra os princípios de desenvolvimento sustentável e justiça climática implementando uma série de ações autoritárias, que exclui o cidadão do processo de desenvolvimento econômico, planejamento, gestão e das tomadas de decisão em seu território.

A região dos Parques Ambientais do Estado de São Paulo, sobretudo do Vale, foi colonizada no primeiro ciclo do ouro brasileiro, no início de 1500, quando os exploradores subiram o rio Ribeira de Iguape com pessoas escravizadas à procura de riquezas minerais. Sendo assim, além da Mata Atlântica, o Vale do Ribeira abriga a maior concentração de comunidades tradicionais e quilombolas do estado de São Paulo.

A partir de 1990, a riqueza natural justificou a implementação de políticas conservacionistas e preservacionistas, e diversos parques ambientais de proteção integral foram demarcados sobrepondo as comunidades que viviam isoladas nas florestas. Em 2000, com a implementação do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), diversas comunidades foram proibidas de manter sua prática de subsistência, sendo expulsas de suas terras.

Iporanga está no coração da Mata Atlântica do Vale do Ribeira, a cerca de 300 km da capital, e concentra a maior área do bioma preservado e números de cavernas do Brasil. Além de 75% do Petar, ela sedia o Parque Estadual Caverna do Diabo e Parque Estadual de Intervales, sendo 60% de seu território destinados à proteção integral do meio ambiente. Iporanga também tornou-se uma arena de disputa pelo direito das comunidades tradicionais, caboclas e quilombolas para permanecerem no local e não serem incluídas nas dinâmicas territoriais.

Vale destacar o papel crucial que os parques desempenham para a conservação da biodiversidade e economia local. No entanto, o projeto de concessão do Petar não prioriza a população local. Ao contrário, prevê um desenvolvimento de luxo, com altos riscos de gentrificação do território - mudança do perfil social de uma região a partir do aumento do preço da propriedade - e exclusão social, principalmente, daqueles com menor capacidade competitiva. A proposta é destinada a grandes empresas e ameaça a rede econômica do turismo local, especialmente o pequeno empreendedor e monitor autônomo.

Para piorar a situação, Jair Bolsonaro assinou dia 12 de janeiro de 2022 um novo decreto que autoriza a destruição, independentemente do seu grau de relevância, de qualquer caverna, e ainda permite que estudos para mudanças do grau de relevância das cavernas sejam executados pelos próprios empreendedores. O que espanta em tudo isso é a convergência nas políticas públicas de governos federal e estadual que são, teoricamente, antagônicos.

Apenas após muita pressão popular e manifestações institucionais, o ministro do STF Ricardo Lewandovski suspendeu diversos trechos da legislação proposta pelo presidente da República, acatando o argumento de que o decreto de Bolsonaro iria "ocasionar o desaparecimento de formações geológicas, marcadas por registros únicos de variações ambientais e constituídas ao longo de dezenas de milhares de anos, incluindo restos de animais extintos ou vestígios de ocupações pré-históricas".

Certamente, essas coincidências nas políticas ambientais de governo estadual e federal não são por acaso. A caverna é um bem da União (governo federal), mas o projeto de concessão do Petar já prevê passar a posse das cavernas para a livre exploração da iniciativa privada internacional.

A venda casada forjada na justificativa do "desenvolvimento local" através de Parcerias Público-Privadas é uma armadilha da agenda de sustentabilidade, quando usada como instrumento de favorecimento empresarial, ao invés da promoção do bem-estar social.

Surpreendentemente, a gravação da última audiência pública, promovida pela bancada ambientalista da Alesp (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo), ficou temporariamente fora do ar. Ao mesmo tempo, espalha-se, localmente, o burburinho de que não haverá mais a concessão, enquanto representantes da Fundação Florestal iniciam um processo para acalmar os empresários locais e a abertura de novos roteiros.

Durante a visita do diretor executivo da Fundação Florestal, Rodrigo Levkovicz, ao Petar, em 23 de janeiro de 2022, representantes de diversos setores da sociedade reuniram-se para manifestar a indignação e reivindicar que seja desenvolvido um projeto de gestão baseado em dados concretos e em conjunto com a população local. Ficou claro que trata-se de um plano de governo maior, com objetivos de suprir os anseios do "trade internacional".

A falta de abertura para o diálogo com a população local evidencia que o interesse do Governo João Doria não é promover desenvolvimento sustentável, empoderar a população ou promover a inclusão política e social como dita os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU. O que vemos é, mais uma vez, o estado usar da máquina pública para beneficiar interesses particulares.

Enquanto o plano é de extermínio nacional para a destruição em massa das cavernas e o meio ambiente, Iporanga clama por socorro. Para o Petar, é necessário um modelo integrado que priorize o bem estar social, valorize a cultura local e promova, sobretudo, um desenvolvimento equitativo das comunidades tradicionais, caboclos e quilombolas, monitores ambientais e toda a população.

Saiba mais sobre a campanha #PETARsemCONCESSÃO .

*Ana Beatriz Nestlehner, arquiteta e urbanista, especialista em planejamento territorial, pesquisadora do Nucleo de Estudos da Paisagem da FAUUSP, fundadora da associação Via Austroboreal e integrante do Movimento #PETARsemCONCESSÃO

*Douglas Belchior é professor de História, fundador da Uneafro Brasil e membro da Coalizão Negra por Direitos.