Degola, linchamento e cassação: gente negra pode mesmo eleger e ser eleita?
Imagina se uma vereadora negra de Catanduva (SP) e um vereador negro de Curitiba (PR) tivessem seus mandatos ameaçados de cassação após participarem de atos contra o racismo e por justiça para o jovem congolês Moïse Kabagambe e Durval Teófilo Filho, assassinados no Rio de Janeiro?
A previsão desse desfecho escapou até mesmo a exímios pessimistas. Mas essa é a situação vivida respectivamente por Taise Braz e Renato Freitas, ambos do Partido dos Trabalhadores (PT) e alvo de acusações de quebra de decoro parlamentar. Os dois teriam violado regras de conduta perante monumentos históricos, especificamente ligados à igreja católica.
O imbróglio começou a ser montado no dia do ato por Moïse em Curitiba, em 5 de fevereiro, quando Renato Freitas e outros manifestantes entraram na Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de São Benedito, após a missa daquele sábado, como forma de encerrar a manifestação que ocorria na praça pública que circunda a construção. Essa teria sido a violação.
A propósito, a edificação da igreja original remonta ao século 18, quando pessoas negras escravizadas, libertas e livres vinculadas às irmandades do Rosário e de São Benedito, muitas com origem na região do Congo, se empenharam para ter um espaço para praticar sua fé católica. Em 1931, a antiga construção foi demolida e substituída pela atual, de 1946, na qual foram mantidos azulejos que decoravam a primeira. Embora a gestão do espaço tenha se alterado, a Igreja do Rosário segue associada à presença negra no Paraná.
Voltando à manifestação que terminou com a ocupação do templo, nenhuma pessoa foi agredida, nem o espaço foi profanado material e simbolicamente. As imagens mostram manifestantes ocupando os bancos, falando e ouvindo sobre informações que justificavam atos como aquele em todo o país. Todavia, o episódio serviu de deixa para uma onda de acusações de desrespeito religioso. Quatro representações contra o vereador Renato Freitas foram admitidas pela Mesa Diretora da Câmara de Curitiba, na quinta-feira seguinte, 10.
Mensagens falsas
No dia 12 de fevereiro, foi a vez de Taise Braz se ver envolvida em acusações semelhantes em Catanduva. Na cidade do interior paulista de pouco mais de 120 mil habitantes, entidades de movimento negro e partidos políticos de esquerda promoveram uma roda de conversa na Praça da Matriz, que também leva o nome de Monsenhor Albino.
No local há uma estátua de Albino Alves da Cunha e Silva (1882-1973), padre português que migrou para o Brasil após a implantação da República no país europeu em 1910, instalou-se em Catanduva em 1918 e se tornou uma figura símbolo da cidade. Ao longo da vida, esteve envolvido com a construção da igreja matriz, hospitais, escolas, faculdades, entre outras obras no município.
Seja porque as pessoas presentes viram a estátua como patrimônio de todos ou por essa representar algo a ser problematizado, o fato é que o registro da atividade aconteceu justamente em volta da imagem de Padre Albino, que foi decorada com uma bandeira do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). A sigla, portanto, nem era a do partido de Taise Braz, mas isso não impediu que detratores tentassem enquadrá-la como mais uma violadora do catolicismo, tal como feito com Renato. Até o momento, nenhuma representação foi formalizada na Câmara Municipal de Catanduva, mas a circulação de mensagens falsas nas redes sociais já fez bastante estrago.
Os comentários acerca desses dois casos poderiam se encerrar com alguma piada sobre exageros, numa perspectiva bem abstrata. Ou ainda, enveredar por um debate sobre patrimônio histórico sem lidar com temas sensíveis de nossa formação nacional. Porém, o que está acontecendo com Taise e Renato se soma a uma série de outros episódios de tentativa ou mesmo de efetiva interdição da participação de pessoas negras no chamado jogo político democrático da República brasileira.
Na verdade, depois da brutal execução de Marielle Franco, é preciso estar muito à vontade com o racismo na política e no cotidiano para não admitir a gravidade do que tem acontecido com vereadoras e vereadores negros, como: Ana Lúcia Martins (Joinville); Benny Briolly (Niterói); Bruna Rodrigues, Daiana Santos, Karen Santos, Laura Sito e Matheus Gomes (Porto Alegre); Andréia de Jesus (Belo Horizonte); Paolla Miguel (Campinas); Carol Dartora (Curitiba), entre outros exemplos. Isso sem falar de deputados e deputadas estaduais e federais.
O próprio vereador Renato Freitas, após um conflito durante uma manifestação em julho de 2021, chegou a ser preso por policiais militares, que empregaram um método muito semelhante ao que levou à morte de George Floyd, em maio de 2020. Ou seja, não adiantou ser vereador, nem ter se formado bacharel e mestre em direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), onde defendeu a monografia "Abolicionismo ou barbárie: elementos para uma crítica do direito" (2012); e a dissertação de mestrado "Prisões e quebradas: o campo em evidência" (2017). Renato era e segue sendo visto como incompatível com a condição de vereador e de sujeito de direitos.
Os mesmos dramas do primeiro deputado federal negro
As experiências desses vereadores, aliás, guardam várias semelhanças com o vivido por Manoel da Motta Monteiro Lopes, considerado por muitos o primeiro deputado federal negro da República. Sua trajetória tem sido estudada pelos historiadores Carolina Vianna Dantas e Juarez Silva Júnior e está repleta de episódios de discriminação racial ora assumidos, ora mal dissimulados. Monteiro Lopes nasceu negro e livre na cidade do Recife, Pernambuco, em 1867, filho de pai e mãe também negros. Formou-se pela Faculdade de Direito de Recife, mas logo se mudou para o Amazonas e, em seguida, para o Rio de Janeiro, onde se fixou a partir de 1893.
Bastante envolvido com as causas operárias, foi eleito como membro do Conselho Municipal do então Distrito Federal em 1903, mesmo sem ter vínculo partidário. Tentou a reeleição no ano seguinte, mas não foi empossado, apesar de uma expressiva votação. Era a chamada degola eleitoral, uma fraude que interditava a participação de figuras indesejadas, algo bem comum nos pleitos da Primeira República (1889-1930). Em 1905, mais uma vez sem apresentar vinculação partidária, candidatou-se a deputado federal. Novamente, ganhou, mas não levou. Mais uma degola o impediu de ser reconhecido e diplomado.
Isso, porém, não o fez desistir. Em 1909, apresentou candidatura pelo Partido Republicano Democrata e promoveu uma mobilização de norte a sul do país, chegando a atravessar as fronteiras nacionais. Na campanha, o enfrentamento ao "preconceito de cor" foi motivo da adesão de muita gente, embora não se tratasse de uma agenda política explicitamente defendida por ele. Talvez porque sua própria presença já fosse barulhenta demais, sobretudo se considerarmos os insultos racistas de toda ordem que recebia nas páginas de jornais e revistas, e, por certo, em outros espaços sociais.
A estratégia funcionou e foi comemorada por várias pessoas negras e mais outras muitas brancas que se sentiam representadas por Monteiro Lopes. Trata-se de um episódio que desafia a ideia de povo alienado, que não se importa com a política. Ao mesmo tempo, é também um fato histórico que, quando aproximado a outros de temporalidades variadas, nos convida a refletir sobre a viabilidade do exercício do direito político de votar e ser votado para pessoas negras no Brasil.
Lamentavelmente, Monteiro Lopes faleceu em dezembro de 1910, poucos meses depois de empossado, aos 43 anos. Sua experiência não foi exaltada pelos anais do parlamento brasileiro por muito tempo. Caiu no esquecimento e outra candidatura com aquela empolgação não se repetiu no pleito seguinte. O que vimos em nosso percurso republicano foi uma presença negra numericamente tímida e encurralada, tendo que coexistir com as estatísticas de linchamentos e genocídio a atingir uma maioria de cidadãs e cidadãos negros brasileiros.
Nesse cenário, quem ganha com a deslegitimação ou mesmo a cassação de mandatos como os de Renato Freitas e Taise Braz perante eleitores negros ou brancos com compromisso antirracista?
Estamos em ano eleitoral e é fundamental questionar: que garantias essa Nação oferece para que UM OU UMA DE NÓS esteja nesses espaços institucionais com condições de exercer seu mandato com a coerência que esperamos? Nossa condição de eleitores serve para quê?
*Ana Flávia Magalhães Pinto é integrante da Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros.
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