Human Rights Watch: Plataformas de redes sociais falham com eleitores
A tensão não poderia ser maior nesta eleição. No entanto, as plataformas digitais estão previsivelmente falhando em responder ao momento.
Mais de 120 milhões de brasileiros votaram no primeiro turno das eleições em 2 de outubro. Neste domingo (30), o segundo turno determinará o próximo presidente do Brasil.
Esta eleição é provavelmente um teste de fogo para a democracia e o Estado de direito no Brasil, com consequências que ultrapassam suas fronteiras, dado o tamanho e a influência do país.
Nos últimos anos, o presidente Jair Bolsonaro atacou o sistema eleitoral, alegando, sem fornecer qualquer prova, que ele não é confiável. Em 17 de outubro, apenas duas semanas antes do segundo turno, Bolsonaro voltou a colocar a integridade do sistema eleitoral em questão.
Como em outros países, as plataformas de redes sociais e os aplicativos de mensagens se tornaram a verdadeira "praça pública" onde a campanha e o debate eleitoral ocorrem de fato. As plataformas digitais têm responsabilidade de respeitar os direitos humanos. Isso inclui o direito dos brasileiros de participar de eleições democráticas.
Organizações da sociedade civil brasileira vêm alertando para a disseminação da desinformação relacionada às eleições. Em fevereiro, o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) assinou acordos com o Twitter, TikTok, Facebook, WhatsApp, Google, Instagram, YouTube e Kwai com o objetivo de conter a desinformação durante o processo eleitoral.
As plataformas, entretanto, têm deixado muito a desejar no cumprimento de suas responsabilidades. E, como previsto, a disseminação de desinformação eleitoral arrisca enfraquecer o processo democrático brasileiro.
No próprio dia 2 de outubro e nos dias que se seguiram à apuração dos votos pelo TSE, vídeos e publicações com desinformação e alegações de fraude eleitoral começaram a circular nas redes. Grupos de apoiadores de Bolsonaro no WhatsApp e Telegram circularam mensagens dizendo que, "se Bolsonaro não ganhar é fraude nas urnas, devemos ir todos as [sic] ruas!".
De acordo com o TSE, alertas de fake news aumentaram significativamente em relação ao primeiro turno. O tribunal informou ter recebido 5.869 comunicações nos primeiros 11 dias da campanha para o segundo turno, o que representou quase metade de todas as comunicações recebidas durante o ano. Os alertas cresceram 1.671% em relação à eleição municipal de 2020.
Pessoas com centenas de milhares de seguidores alegavam fraude na contagem dos votos. Um tuíte, por exemplo, sugeria que a "malandragem" havia começado após um intervalo de 15 minutos sem atualizações da apuração pela Justiça Eleitoral, insinuando que isso favoreceria o adversário de Bolsonaro.
O tuíte ainda está online, tem mais de 30 mil curtidas e, até o momento da elaboração deste artigo, não direcionava o seguidor para nenhum link com informações da justiça eleitoral, dos resultados oficiais das eleições ou para outras informações precisas. Outros tuítes que explicitamente alegam "fraude eleitoral" sem fundamento, e sem alerta ou link para conteúdo de credibilidade, permanecem online.
Existem três dimensões deste problema:
Em primeiro lugar, organizações da sociedade civil brasileira denunciaram que nenhuma plataforma, além do Twitter, tem política para impedir chamados à sublevação contra a ordem democrática ou à interferência na transição pacífica de poder que não incitem explicitamente a violência. Isso é problemático porque as plataformas poderiam ser usadas para organizar e promover ações antidemocráticas no caso de uma crise institucional após a eleição.
Em segundo lugar, quando se trata de alegações de fraude eleitoral, as políticas das plataformas são muito diferentes, e mesmo as mais rígidas nem sempre são aplicadas. As políticas da Meta disponibilizadas ao público, por exemplo, proíbem a promoção de conteúdo pago que alegue fraude eleitoral, mas não abordam conteúdo similar que não seja patrocinado.
Uma pesquisa do Netlab da Universidade Federal do Rio de Janeiro, descobriu que a Meta permite que alguns conteúdos circulem no Facebook e no Instagram mesmo depois de serem classificados como desinformação eleitoral por checadores de informações independentes, em alguns casos inclusive sem rotular conteúdo, ou seja, sem indicar ao usuário conteúdo de credibilidade.
A maioria das postagens no estudo afirma que as urnas eletrônicas não são confiáveis e que seria fácil fraudar a eleição. O estudo também constatou que perfis de políticos são os que mais publicam desinformação eleitoral.
Outro estudo do Netlab documentou pelo menos quatro casos de anúncios pagos em serviços da Meta contendo alegações infundadas que questionam a confiabilidade da contagem de votos.
O Twitter tem uma política de integridade cívica e eleitoral. Contudo, tuítes repetindo falsas alegações de fraude eleitoral demonstram que a empresa nem sempre implementa adequadamente sua política. A política de integridade eleitoral do YouTube restringe-se a falsas alegações de fraude eleitoral em eleições anteriores.
Uma investigação da consultoria de análise Novelo Data publicada pela Folha de S.Paulo descobriu que, entre os dias 2 e 15 de outubro, 16 transmissões ao vivo e 137 vídeos com alegações de fraude sem provas foram publicados no YouTube. Ao todo, o conteúdo teve pelo menos 3,3 milhões de visualizações. Parte deste conteúdo ainda está disponível.
O Telegram é ainda pior. Não disponibiliza publicamente uma política para lidar com a desinformação e os ataques à democracia e não tem cumprido os compromissos assumidos com o TSE em março. Telegram e WhatsApp são apontados como as principais plataformas utilizadas para disseminar desinformação sobre o processo eleitoral, com grupos e canais com dezenas e milhares de seguidores dedicados a divulgar essa narrativa. Esse tipo de plataforma de mensagens apresenta desafios distintos para detectar e reduzir a desinformação.
A terceira dimensão do problema é que as plataformas digitais têm a prática de flexibilizar suas regras para atores poderosos e permitir que políticos se safem com discursos que violam suas políticas. Acessar o que os políticos dizem é de fato crucial para permitir que eles sejam responsabilizados. Mas ser mais permissivo com atores poderosos pode permitir que eles incitem a violência nessas plataformas, ou causem outros danos, com poucas consequências.
Como os políticos têm mais influência na sociedade do que outras pessoas, suas declarações têm, de fato, maior potencial de causar danos. Muitos dos maiores propagadores de fake news no Brasil estão no mais alto nível da política nacional. Boa parte da desconfiança no sistema eleitoral brasileiro foi propagada por Bolsonaro e seus filhos.
A Human Rights Watch perguntou ao Google/YouTube, Meta, Telegram e Twitter sobre seus esforços para mitigar a desinformação eleitoral nas eleições brasileiras. Nenhuma empresa abordou diretamente nossas questões específicas, porém a Meta disse que lançou ferramentas que promovem informações confiáveis e rotulam postagens relacionadas às eleições, que estabeleceu um canal direto para o TSE encaminhar conteúdo potencialmente nocivo para análise, que fornece acesso a dados sobre conteúdos removidos do Facebook e Instagram durante a campanha, e que continua colaborando com autoridades e pesquisadores brasileiros.
O Twitter disse que sua política de integridade cívica aborda desinformação que pode afetar a integridade dos processos cívicos e que, de forma contínua, removeu e/ou adicionou rótulos e contexto a tuítes enganosos e prejudiciais e reduziu sua visibilidade. O Twitter observa que, de acordo com suas políticas, opiniões, diferentes pontos de vista e interpretações não são necessariamente acionáveis. Google/YouTube e Telegram não responderam.
Para cumprir suas responsabilidades, as plataformas deveriam:
- acatar sem demora as decisões de remoção de conteúdo do TSE;
- corrigir lacunas em suas políticas e aplicá-las de maneira a garantir que respeitem o direito dos brasileiros de participarem de eleições democráticas. Isso requer esforços e recursos adequados para proteger a integridade eleitoral e o discurso cívico, bem como ser transparente e responsável por suas ações;
- ser mais rigorosas com políticos quando se trata de discurso que possa incitar a violência ou espalhar desinformação que tenha o potencial de prejudicar o processo democrático.
Esforços das plataformas direcionados a lidar com a desinformação eleitoral são necessários, mas insuficientes. De modo geral, elas precisam lidar com o problema crônico de investir de forma insuficiente na segurança dos usuários em todo o mundo.
As autoridades competentes deveriam atuar em relação aos abusos de direitos humanos facilitados pelo modelo de negócio das principais plataformas. Elas coletam dados pessoais de forma massiva que usam para vender a terceiros a atenção das pessoas. Além disso, elas são amplamente projetadas para priorizar o "engajamento" acima dos direitos humanos.
*Maria Laura Canineu é a diretora do escritório Brasil e Deborah Brown é pesquisadora sênior em tecnologia e direitos humanos da Human Rights Watch.
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