Mulheres no mercado de trabalho: Nobel acolá, e grávida desconsiderada aqui
De forma muito simbólica, na mesma semana em que a norte-americana Claudia Goldin foi laureada com o Nobel de Economia por pesquisas relacionadas às mulheres no mercado de trabalho, no Brasil uma advogada teve negado seu direito de adiar uma audiência no dia do parto. Como resposta, o juiz lhe afirmou: gravidez não é doença.
O mundo vive de paradoxos, com avanços e retrocessos contínuos, mas o Brasil tem se destacado em retrocessos no que diz respeito à cultura de reconhecimento da igualdade de direitos das mulheres. Dado que a cultura é a base da promoção das leis, a fala do juiz, como espelho de uma realidade brutal, revela o quanto é preciso mudar. Mais que isso, é preciso revolucionar.
Tudo perpassa uma compreensão aprofundada da igualdade material, que, diante de raízes históricas de desigualdade injustificada, demanda força da sociedade e do direito para compensar o indevido tratamento diferenciado entre homens e mulheres.
Homens e mulheres são diferentes em sua estrutura física e no papel histórico em que foram colocados, mas não nos sonhos, na capacidade laborativa, nos direitos e possibilidades de florescimento individual.
Cabe à inteligência humana considerar o elemento de distinção adequado, para, diante dos desafios históricos já enfrentados e das peculiaridades próprias de cada um, possibilitar que homens e mulheres possam ocupar os mesmos lugares na sociedade, trabalhar com dignidade, ter o direito a uma vida feliz, sem opressão.
Veja-se que o simples e regular exercício da profissão levou uma advogada grávida, no pleno gozo dos direitos que lhe confere a legislação vigente, a solicitar formalmente à relatoria de um processo em trâmite perante o TRT da 8ª região o adiamento do julgado em face de seu estado gravídico e da premência do parto, o que inviabilizaria sua participação na sessão de julgamento.
Seria simples e, de forma geral, o fato se circunscreveria à mera menção por ocasião do pregão do processo a ser adiado conquanto a relatora já havia analisado o pedido e começou a anunciar o deferimento, quando o desembargador presidente da sessão interrompeu a relatora e começou a desfiar sua série de impropérios, hostilizando a um só tempo as colegas desembargadoras, a advogada da causa e a própria advocacia ao arrematar por dizer que gravidez não é doença e, ainda, que a advogada poderia se fazer substituir por um dos mais de 10 mil advogados de Belém.
Essas falas insuscetíveis de qualquer justificativa foram proferidas em plena sessão de julgamento em que em mais de uma oportunidade o referido presidente demonstrou seu desprezo pela urbanidade e pelo respeito tanto às colegas desembargadoras membras do mesmo tribunal quanto à advocacia.
Diante da repercussão do caso, logo veio um arremedo de pedido de desculpas, levantamento de hashtag, card do CNJ e posterior pedido de afastamento por parte do Conselho Federal da OAB, que redundaram em desgravo da seccional paraense e abertura de procedimento por parte da Corregedoria Nacional de Justiça.
Mas o que de fato esse caso implica e nos diz que é necessário trazer a público para se refletir sobre toda a sorte de preconceitos que a questão encerra?
Inicialmente, seria necessário livrar o indigitado desembargador da ignorância, e todo um grupo de pessoas que ele representa em seus preconceitos estruturais, trazendo dois conceitos que pareceu desconhecer, a saber: o primeiro se refere à gravidez, e o segundo, o de prerrogativas.
Em simples levantamento junto a sítios de pesquisa, infere-se que gravidez é o período de cerca de nove meses de gestação nas mulheres, contado a partir da fecundação e implantação de um óvulo no útero até o nascimento, período esse em que o organismo materno passa por diversas alterações fisiológicas que sustentam o bebê em crescimento e preparam o parto.
Prerrogativas são direitos imprescindíveis que garantem a independência e autonomia do exercício da profissão e a defesa do cidadão perante o estado democrático de direito e estão regulamentadas pelos artigos 6º e 7º do Estatuto da OAB - Lei n° 8.906/94.
A Lei nº 13.363/2016, por seu turno, alterou o Estatuto da Advocacia e trouxe avanços ao assegurar direitos às advogadas gestantes, lactantes e no período pós-parto ou adoção, visando justamente garantir às mulheres condições que lhe permitam conciliar a maternidade com o exercício da advocacia.
Voltando ao cerne do caso, é importante registrar que não, a gravidez não é doença e destaque-se que a advogada não justificou seu pedido de adiamento pela gravidez o que até poderia ter feito, mas pela superveniência do parto.
Newsletter
PRA COMEÇAR O DIA
Comece o dia bem informado sobre os fatos mais importantes do momento. Edição diária de segunda a sexta.
Quero receberE não, os advogados e advogadas não são substituíveis como crê o magistrado. Afinal, o cliente ou a cliente tem sim direito a se fazer representar pelo causídico ou causídica em quem confia e, ainda, um processo não começa na hora da sustentação, mas passa por todo um trabalho prévio e realizado antes dali que não pode e nem deve ser descredenciado por quem não entende e não respeita a dignidade da advocacia.
Episódios como esse mostram o quanto ainda precisamos avançar no enfrentamento à misoginia, porquanto esse magistrado que saiu de uma mulher, ainda veio a público referenciar as mulheres da sua vida para usá-las como fundamento de sua ação infundada ao se dizer defensor do direito das mulheres.
Pois bem. Nascer de uma mulher, ter uma esposa, filhas, noras parece em nenhum momento ter contribuído para fazer brotar no homem verdadeira noção de respeito pela condição feminina e pela importância da maternidade e da gravidez não apenas como condição individual, mas social, do interesse de todos.
A forma abjeta com que são tratadas as colegas desembargadoras, tão membras da Corte como ele, são reveladoras, uma vez que nos mostram o quão tímidas têm sido as nossas políticas afirmativas para fazer chegar mais mulheres em posições de poder. E longe de ser um problema brasileiro, é possível observar situações semelhantes em nível mundial, em que as mulheres são questionadas ou inviabilizadas por serem mulheres e necessitarem conciliar os múltiplos papéis que a mulher contemporânea assume na sociedade.
Durante a repercussão do caso, foi possível perceber como efetivamente a lei supra referida, que buscou efetivar o resguardo da gravidez e do parto das advogadas, não tem conseguido dar efetividade à garantia do trabalho digno da mulher advogada no Brasil, posto que várias foram as histórias narradas por advogadas que passaram bem recentemente por circunstâncias semelhantes e vários constrangimentos, por pugnarem pelo respeito à condição de grávida ou lactante.
No dia 25 do mesmo mês, a advogada que nos possibilitou esse avanço foi alçada à condição de ministra do Superior Tribunal de Justiça e esta fez constar da sua sabatina o registro do nascedouro da denominada e já citada Lei n.º 13.363/2016, denominada Lei Julia Matos.
O nome Julia Matos se refere à filha da então advogada e ora ministra indicada ao STJ Daniela Teixeira, cujo nascimento ocorrido em 2013 se deu de forma prematura após a advogada Daniela, que deveria realizar sustentação oral de uma causa no CNJ naquele ano, ter solicitado, pela naturalidade da situação, preferência. Porém, o presidente do CNJ na época negou o pedido levando a advogada a se postar em longa espera e, posteriormente, dar à luz antecipadamente o que levou a recém-nascida Julia a passar 61 dias dentro de uma UTI.
E por que será que advogadas seguem sendo destratadas, constrangidas e violentadas no que deveria ser o simples exercício da sua profissão e prerrogativas, mesmo com a existência dessa lei tão óbvia e tão eloquente para reconhecer a condição que inspira tratamento diferenciado e não privilegiado?
A resposta poderia ser justificada pelo machismo, pelo ódio às mulheres. Contudo, é necessário fazer uma incursão mais profunda sobre esse fenômeno que leva pessoas, inclusive mulheres, a relegarem às mulheres um tratamento odioso e desrespeitoso.
Para bem compreender por que tantos anos após a propagação das ideias e ideais feministas seguem sofrendo as consequências do machismo, precisamos ter noção do que é o patriarcado e como age.
Como bem definiu Bell Hooks em tradução de Carol Correa: "O patriarcado é um sistema político-social que insiste que os homens são profundamente dominantes, superiores a tudo e a todos considerados fracos, especialmente mulheres, e que são dotados do direito de dominar e governar os fracos e de manter esse domínio através de várias formas de terrorismo psicológico e violência".
E é esse sistema que, mesmo nos lares chefiados por mulheres, se mantém, que se opõe ao avanço das mulheres e à implementação de um regime de igualdade, que faz com que uma mulher precise fazer a escolha entre ser mãe e ser profissional para, eventualmente, ser criticada pelas decorrências dessa mesma escolha a qual foi forçada.
Não é à toa que, em pesquisa realizada pela professora Patrícia Bertolin, as advogadas que conseguiram romper o teto de vidro e chegar aos postos mais elevados em grandes escritórios de advocacia da cidade de São Paulo a referência à dor que permeou seu caminho, além da solidão, foram as menções mais frequentes.
O estudo de Patrícia como ela mesma acentua: "Trata do teto de vidro encontrado pelas mulheres nas maiores Sociedades de Advogados e dos problemas enfrentados por essas profissionais, que dificultam a sua ascensão, quase sempre vinculados à maternidade. Analisa também as estratégias utilizadas por aquelas que conseguiram superar essas dificuldades".
Fica então o alerta: é preciso fazer valer as leis, a proporcionalidade, mas também mudar uma cultura. E para tanto, precisamos de uma união de saberes e sentimentos, da união em torno de uma causa, de forma não individual, mas coletiva, para que a superação de desafios não seja a dor de uma, mas o dar-se as mãos e um sentimento de luta compartilhada.
Assim, o presente artigo, ao mesmo tempo em que se coloca como uma reflexão ao fato ocorrido no TRT da 8º região com o intuito de fomentar o debate, traz também como um aceno para mudança desse cruel estado de coisas, a necessidade da superação da competição entre as mulheres, que sempre nos dividiu e separou, e a formação cada vez mais presente de grupos de mulheres, notadamente, profissionais da área jurídica que buscam juntas se fortalecer para enfrentar os desafios do cotidiano, e também inspirar a mudança, se dispondo a cuidar das novas gerações de juristas.
E é nessa perspectiva que conclamamos as mulheres a seguirem se unindo e formando quadros altivos e capazes de se oporem ao patriarcado tão presente no nosso dia a dia, e assim marcar a hora do término da misoginia que nos agride, nos afeta e nos diminui como profissionais.
Os estudos de Claudia Goldin para tornarem efetivos os direitos econômicos das mulheres precisão de políticas públicas em inúmeros países do mundo, especialmente no Brasil, mas também precisarão do combate a uma cultura que alicerça e legitima injustiças, e da união das mulheres para fazerem valer seus direitos.
*Membras da Abradep (Associação Brasileira de Direito Eleitoral e Político)
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.