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Com investigação vergonhosa, agentes públicos vinham escapando de punição

Agentes públicos mataram Marielle Franco e Anderson Gomes, e as autoridades falharam em honrar a memória das vítimas ao conduzir uma investigação policial marcada por falhas gritantes, omissões e atos de obstrução de justiça. As prisões dos mandantes neste domingo (24) acontecem mais de seis anos depois do atentado no bairro carioca do Estácio, ocorrido em 14 de março de 2018.

Marielle discursa na Câmara Municipal do Rio em 2018
Marielle discursa na Câmara Municipal do Rio em 2018 Imagem: Renan Olaz/AFP

Muitas provas foram destruídas. E logo no começo. Os projéteis encontrados na cena do crime foram recolhidos de maneira que impediu a análise pericial. As câmeras da prefeitura estavam desligadas. Investigadores perderam as imagens gravadas por estabelecimentos comerciais na região. A jornalista Vera Araújo conseguiu o que os policiais civis foram incapazes de fazer: encontrou testemunhas do atentado.

Quem lê as milhares de páginas do inquérito comandado pelo delegado Giniton Lages, o primeiro chefe da investigação, vai perceber dezenas desses pequenos erros, incongruências, lacunas, indícios que informações eram vazadas aos investigados. Poucas horas antes da operação de captura, em março de 2019, alguém avisou a Ronnie Lessa, o assassino, que ele seria preso.

Darei outro exemplo que demonstra a atuação vergonhosa da Polícia Civil do Rio. Um relato ao Disque-Denúncia indicava que um ex-policial militar passava relatórios sobre a rotina de Marielle aos assassinos. Esse ex-PM havia sido condenado por sua participação na chacina da favela de Vigário Geral, ocorrida em 1993, e tinha obtido um emprego na Câmara Municipal do Rio por meio de um vereador envolvido com milícias.

Pois bem, os policiais civis não pediram a quebra de sigilos bancário e telefônico desse ex-PM nem fizeram outras incursões investigativas. Ele foi convocado para prestar depoimento e nada lhe foi perguntado sobre a denúncia. Nunca mais apareceu na investigação. Estranho, né?

A primeira ação de encobrimento do caso foi executada dois meses depois do atentado. E teve a participação direta de três delegados federais. Eles levaram à Delegacia de Homicídios o policial militar Rodrigo Jorge Ferreira, que prestou um depoimento mentiroso. O PM afirmou que o miliciano Orlando Curicica e o vereador Marcelo Sicilliano eram os mandantes do crime. Sicilliano, longe de ser um homem santo, era inimigo político da família Brazão. As digitais de Domingos Brazão eram evidentes.

Vendo que serviria de bucha de canhão, Curicica abriu a boca: em depoimentos impressionantes pelo nível de detalhe, contou que a máfia do jogo do bicho paga propina para todas delegacias do Rio e que membros do chamado Escritório do Crime subornavam policiais da Delegacia de Homicídios para que assassinatos não fossem solucionados.

O cenário acima descrito demonstra uma verdade inescapável: o caso Marielle explica o grau de contaminação do poder público do Rio de Janeiro pelo crime organizado. Descobrir quem estava envolvido no caso é desmontar toda uma estrutura que amalgama crime e política.

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Agentes públicos com longo histórico criminal são os protagonistas da trama: os ex-policiais militares Ronnie Lessa e Élcio Vieira de Queiroz executaram a vereadora e o motorista. Eles agiram a mando de Domingos Brazão, conselheiro do Tribunal de Contas do Rio, e de seu irmão Chiquinho, hoje deputado federal. Rivaldo Barbosa, chefe da Polícia Civil do Rio, deu aval para a execução, aponta a Polícia Federal.

Não há inocente nesta história macabra. Os corpos de Marielle e Anderson mal tinham sido enterrados e membros do Ministério Público do Rio de Janeiro e Raquel Dodge, a procuradora-geral da República, disputavam o protagonismo da investigação, no lugar de aliar forças para desvendar o homicídio político mais importante da história do Brasil desde o assassinato de Chico Mendes. Preferiram estender essa disputa a um processo inútil no Superior Tribunal de Justiça para federalizar o caso.

Não houve cooperação entre as autoridades federais e estaduais. A Polícia Federal entrou no caso para investigar as tentativas de obstrução da investigação, mas não houve compartilhamento de informações com a Polícia Civil, que investiga o homicídio. Cinco delegados da DH comandaram o caso, sem conseguir obter um desfecho.

Seis anos depois, a Polícia Federal chega à prisão dos mandantes. Antes tarde do que mais tarde, mas a história da investigação policial do Caso Marielle marca um capítulo vergonhoso da história do país.

Flávio VM Costa é jornalista especializado em corrupção no Judiciário e na política, crime organizado e violações de direitos humanos

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Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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