OPINIÃO
A mudança do domicílio de Rosangela Moro: não há consequências jurídicas?
Guilherme de Salles Gonçalves
Colunista convidado
26/03/2024 04h00
Muito polêmica em razão de suas consequências políticas evidentes, a mudança do domicílio eleitoral para o Paraná da deputada federal por São Paulo Rosângela Moro também tem consequências jurídicas, a despeito da opinião de respeitáveis juristas que já escreveram em contrário. Mas, após atenta leitura de vários textos sobre o fato, e de algumas das ações já em trâmite na Justiça Eleitoral, nos pareceu que algumas das (possíveis) consequências jurídicas desse fato ainda não estão claras.
Em primeiro lugar, a mudança de domicílio eleitoral é um fato que pode ser impugnado perante a Justiça Eleitoral, ao menos desde a vigência do Código Eleitoral de 1965. Em 2022, o marido da deputada, o hoje senador Sérgio Moro, teve uma impugnação de mudança de domicílio julgada procedente pelo Tribunal Regional Eleitoral de SP. Já há uma ação nesse sentido tramitando na Justiça Eleitoral do PR - e que, evidentemente, pode levar a anulação dessa transferência.
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Mas, de fato, concordo que a imediata perda de mandato por uma suposta "infidelidade domiciliar" não é algo que seja possível vislumbrar, ao menos de modo evidente, na vigente legislação eleitoral brasileira e jurisprudência hoje em vigor. Isso porque o domicílio eleitoral no local por onde se pretenda disputar uma eleição é uma condição de elegibilidade, fixada pelo art. 14 da nossa Constituição, e que deve ser aferida no momento do pedido de registro do candidato - e não há nenhuma legislação que diga que a manutenção desse domicílio no curso do mandato é condição para seu exercício, ao menos para deputados federais.
Mas lembro que, ao longo dos últimos 16 anos, duas situações jurídicas que, a princípio, também não eram consideradas como passíveis de gerar inelegibilidade e perda do mandato - e também decorrentes de regras constitucionais do art. 14 da Constituição - sofreram modificações no entendimento da jurisprudência no TSE e no STF que implicaram consequências graves no meio de mandatos em exercício. Ora, vários mandatários ou perderam o mandato por conta dessas mudanças, ou ficaram inelegíveis mesmo no cargo. E, ressalto, sem mudança legal prévia.
Os dois casos famosos:
- Estabelecimento da perda de mandato como consequência da mudança de partido sem justa causa, que o STF julgou constitucional em 2007 e, como consequência jurídica, vários vereadores e deputados que tinham mudado de partido entre uma resposta a consulta no TSE e o julgamento do STF acabaram perdendo o mandato;
- Interpretação retroativa dos prazos de inelegibilidade da Lei do Ficha Limpa (LC 135/2010), onde o STF decidiu que mesmo mandatários que já tivessem cumprido o prazo de punição de inelegibilidade anterior à nova lei - que era de três anos - deveriam ser atingidos pelo prazo novo, de 8 anos. Resultado: diversos mandatários eleitos em 2008, e que tinham sido condenados em ações eleitorais com pena de inelegibilidade entre 2004 e 2007 (e, portanto, elegíveis em 2008) e mesmo exercendo mandatos, ficaram inelegíveis em 2012. Notem que muitos prefeitos e vereadores que estavam nessa condição não puderam se candidatar à reeleição.
Portanto, diante desse histórico e mesmo admitindo que, por ora, não existe qualquer consequência legal direta por conta da mudança do domicílio eleitoral de um deputado federal do Estado que o elegeu para outro, a incongruência política dessa mudança pode, sim, implicar em outras consequências jurídicas por força de ações em trâmite. Os meus 29 anos de advocacia e estudo de Direito Eleitoral me ensinaram uma lição: nessa área, nunca se deve dizer "nunca".
Por fim, afirmo que há, sim, uma consequência jurídica direta e relevante dessa mudança de domicílio eleitoral de um Estado da federação para outro: Rosângela Moro não poderá disputar uma eventual eleição suplementar para o Senado do Paraná se seu marido, senador Sérgio Moro, for cassado. E isso é consequência direta do art. 60 do nosso Código Eleitoral ainda em vigor - e vale a leitura dele para entender o caso: "Art. 60 - O eleitor transferido não poderá votar no novo domicílio eleitoral em eleição suplementar à que tiver sido realizada antes de sua transferência."
Ou seja: como a deputada Rosângela Moro transferiu o domicílio eleitoral em meados de 2024, e a última eleição foi em outubro de 2022, ela não pode votar em qualquer eleição suplementar que decorra desse último pleito - onde Sérgio Moro se elegeu. Evidentemente, não podendo votar, não pode ser votada - eis que a condição de eleitor é premissa para alguém ser candidato; já o contrário não é verdade, pois há casos em que o cidadão pode votar, mas não pode ser votado. Se o objetivo da mudança de domicílio eleitoral era esse, como cogitaram vários analistas políticos, a lei impede esse objetivo político como consequência jurídica imediata desse ato de mudança. Ainda, há jurisprudência do TSE na última década que confirma essa interpretação.
Enfim, entendo que esse debate de opiniões é que faz o Direito Eleitoral tão atraente. Não poderia ser diferente: num campo do Direito que estuda a democracia e sua regulação, estranho seria se não ocorressem essas saudáveis divergências, próprias de uma sociedade plural e tolerante.
Guilherme de Salles Gonçalves é advogado, professor e membro fundador da Abradep (Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político)
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL