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Marçal inova tática de Bolsonaro e prende audiência em um filme ruim

Ninguém precisou assistir à íntegra do debate promovido pelo Estadão com os candidatos a prefeito de São Paulo, na quarta-feira (14), para saber o que aconteceu por lá durante quase duas horas e meia de confronto. Pelas redes, parecia não haver outro tema se não o momento em que Pablo Marçal, candidato do PRTB, sacou do coldre uma carteira de trabalho e simulou exorcizar Guilherme Boulos, do PSOL.

Vinte e quatro horas depois, o link da transmissão oficial do embate no YouTube informava que por ali passaram pouco mais de 1,6 milhão de espectadores. Não se sabe quem assistiu do início até o fim. Uma fração disso, provavelmente.

Em uma só postagem no Instagram, Marçal conseguiu o dobro de audiência no mesmo intervalo: 3,4 milhões com um único vídeo com segundos de duração. Viralizou impulsionado pelas mesmas frentes que por anos fizeram de graça o trabalho de exposição para Jair Bolsonaro: os que adoraram a trollagem e os que acharam tudo um grande absurdo. Ambos usaram a mesma expressão de choque: "caramba, você viu isso?"

O que para uns é grosseria, para outros é demonstração de autenticidade.

Na regra do debate, não estava implicitamente vedado o uso de boné ou carteira de trabalho como utensílio de exorcismo (claro, ninguém pensaria nisso). Também não estava implicitamente proibido o uso da palavra demônio. Menos ainda o acionamento de câmeras para o momento, nos bastidores, em que Boulos, irritado, tenta pegar o documento das mãos de Marçal. Editado com um funk ao fundo, o corte do momento em que ele chama o candidato do PSOL de descontrolado atingiu em 24 horas pouco mais de 4,4 milhões de pessoas - que provavelmente viram só um golpe na luta e acreditaram que ela havia acabado ali.

É provável que, diante da molecagem, os idealizadores dos próximos debates se vacinem ampliando o leque de regras para Marçal não transformar outro embate em um circo onde a principal atração é o palhaço. Mas até lá ele já terá ido e voltado na linha confusa entre o que pode e o que não pode, deixando advogados em parafuso (dois deles já abandonaram a campanha) e os eleitores curiosos para saber se o que move a ousadia é petulância, amadorismo ou esperteza. Uma pessoa que já foi próxima de Marçal diz que é um pouco dos três.

O fato é que, de corte em corte, ele só cresce em exposição.

Estratégia não é (tão) nova

Até Jair Bolsonaro ser eleito presidente, em 2018, a regra implícita de qualquer disputa política era que ninguém poderia vencer uma disputa majoritária sem vestir a fantasia da moderação. Figurino, media training, capacidade de manter a calma e pelo menos fingir conhecimento sobre a leis e temas aleatórios faziam parte da construção das candidaturas em busca daquela coluna do meio de eleitores sem preferências nítidas do campo político.

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No Brasil, Bolsonaro, se não foi o primeiro, foi o mais efetivo em cruzar a linha para ver no que dava. Ganhou fama falando os maiores absurdos em programas de auditório e prometendo fuzilar adversários em campanha. Ecoava assim a mesma linguagem que o brasileiro médio sempre falou nos churrasco das melhores famílias. Criou identificação, e o resto era história.

Para quem estava acostumado a ver regras de etiqueta diante da TV, a descompostura passava como uma espécie de fragilidade na linguagem corrente das análises aparadas em velhas balizas. Ele falava o que o eleitor que nunca gostou de política queria dizer para quem sempre desprezou. E (surpresa!) eles eram muitos no Brasil pós-Lava Jato.

Seis anos depois, não dá para dizer que Pablo Marçal inventou a roda. O que ele faz foi pegar a roda para si e dizer "agora é comigo".

O que parece ser inédita mesmo é a quebra radical de outra regra implícita, esta relacionada às disputas municipais. Os antigos marqueteiros costumavam dizer que no pleito nacional temas culturais ou debates sobre anjos e demônios até mobilizam a atenção. Mas na municipal todo mundo quer saber do buraco da própria rua.

O empresário goiano que anda por aí de jatinho já deu todos os sinais de que não sabe o que fazer com um buraco na rua se vir um pela frente. A depender da profundidade da ravina, é capaz de lançar um desafio e mandar os seguidores para dentro, como já fez na direção contrária ao centro da terra, quando liderou a famosa escalada ao Pico dos Marins.

Muitos ouviram falar dele pela primeira vez quando o hoje candidato a prefeito de São Paulo tomou um pito do chefe dos Bombeiros obrigado a interromper o plantão para resgatar seus cerca de 30 seguidores. Todos acreditaram no papo de que é possível alcançar qualquer objetivo, inclusive o topo de um morro, sem preparo ou visibilidade, só tendo fé no próprio potencial de empreender.

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Fiasco? Não nas redes do autointitulado coach, que de corte em corte para o Instagram ganhou mais e mais seguidores e escalou outras montanhas mais tangíveis até virar candidato a prefeito.

Marçal tem chamado atenção em debates porque conseguiu transformar o espaço em simulacros dos palcos onde costuma falar a centenas de milhares de pessoas. Uma bolha imensa, mas ainda assim bolha.

Mesmo que não seja eleito, já conseguiu o que queria: uma grande vitrine para mentorias e infoprodutos que, em caso de derrota, fatalmente lançará ao fim da campanha sobre como influenciar pessoas e fazer dinheiro

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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