Meu nome é favela com F maiúsculo: IBGE usa termo pela 1ª vez desde 1991
"Meu nome é Favela. Com F maiusculo, por favor. Agora que fui reconhecida pelo principal instituto de pesquisa do país, estou estampada em todos os jornais com minhas múltiplas faces, ângulos e posições. Enfim, todos sabem que eu existo, que vivo e resisto. Queiram-me bem. Sou força transformadora deste país. Mas peço: não me silenciem nunca mais."
Se a favela pudesse falar, talvez ela dissesse algo assim ao comentar a novidade que chegou na última sexta (8): pela primeira vez, desde 1991, o IBGE usou o termo "favela" para seus levantamentos do Censo. Pela primeira vez, parece que a favela e seus moradores — 16 milhões, segundo o Censo 2022 — foram escutados de alguma forma.
Afinal, como é possível imaginar, planejar, executar e monitorar políticas públicas efetivas se até mesmo pela linguagem negligenciamos quem vive nesses territórios?
Esse debate sobre terminologias e identificação não é novo. Desde a década de 1960, uma discussão profunda ocorre sobre como identificar bairros populares: grotas, morros, baixadas, quebradas, vielas e ocupações.
Como diz o ditado, palavras têm poder. Na versão anterior, o IBGE utilizava a categoria "aglomerado subnormal" para se referir a esses territórios.
Na prática, acabou desumanizando ainda mais esses locais. "Subnormal", segundo o dicionário, significa algo abaixo do normal ou da média, reforçando o estigma e o julgamento sobre territórios e pessoas que sempre estiveram à margem das decisões que impactam suas vidas.
Chamar esses territórios de "aglomerados subnormais" foi mais do que um eufemismo técnico, foi uma escolha que invisibilizou e deslegitimou formas de vida, identidade e resistência.
Essa escolha de palavras revela, mais uma vez, o abismo entre quem nomeia e quem vive a experiência. Quem foi consultado para decidir o uso de uma nomenclatura que, em nenhum momento, representou o pensamento dos moradores de favela no Brasil?
O reconhecimento do termo "favela", claro, não significa ignorar as condições subnormais — agora, sim, no sentido literal — que os territórios populares do Brasil enfrentam historicamente.
Mas ao longo desses 50 anos em que o IBGE pôde ouvir e consultar a sociedade, constatou-se algo que as Carolinas e as Marias das favelas sempre disseram: as favelas foram lançadas aos "quartos de despejo" das cidades para que suas potências fossem subnormalizadas.
Nesse sentido, o tempo e as palavras são apenas parte da equação. Assim como a captação de dados. No fim, sem a participação ativa das comunidades, qualquer política corre o risco de ser meramente simbólica, sem impacto real.
A escuta deve ser um primeiro passo para garantir que a política pública não seja mais uma imposição distante, mas um reflexo do que as comunidades realmente desejam e precisam.
Agora, com esse holofote lançado sobre 12.348 favelas e comunidades urbanas do país, a pergunta que fica é: o que fazemos a partir daqui?
A desumanização daqueles que vivem à margem — um processo que, invariavelmente, passa pela linguagem — precisa cessar. Que a favela e o favelado sejam vistos, não apenas nas pesquisas, mas na compreensão geral da sociedade, como sujeitos, e não objetos de políticas ou estigmas.
*Jota Marques, 32, é morador da Cidade de Deus, ativista dos direitos humanos e educador popular. Ex-conselheiro tutelar de Jacarepaguá, atualmente é assessor na Diretoria de Conteúdo e Programação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) e debatedor no programa Sem Censura, na TV Brasil. Em 2023, foi reconhecido como uma das 100 Personalidades Negras Mais Influentes da Lusofonia por sua destacada atuação em educação e comunicação.
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