Análise: O legado de Lula - "Democratização" e protagonismo na política externa
A política externa do presidente Lula é uma das poucas áreas em que o governo termina e o dissenso permanece entre analistas. De fato, para uma política pública que tradicionalmente levanta poucos questionamentos no Brasil, a política externa dos governos Lula é um dos pontos mais controversos de seus oito anos de mandato. Até ensaiou entrar na agenda eleitoral mas acabou perdendo fôlego. Como explicar a controvérsia? Há novidade na política externa de Lula? Qual o legado deixado por oito anos de governo?
Em geral, a avaliação da política externa passa pelos elementos de continuidade/ruptura à luz da tradição, pela forma como o processo decisório é conduzido – mais centralizado ou mais democrático, e se a ação externa equilibra as demandas domésticas, em termos de preferências e interesses, com os sinais emitidos pela economia internacional e pela institucionalidade da política mundial.
A política externa brasileira tradicionalmente sempre esteve ancorada em uma agenda econômica para a promoção do desenvolvimento. A ênfase na agenda comercial e financeira tem definido a tônica da política externa brasileira nas últimas décadas. A novidade está precisamente aqui. Nos dois mandatos do presidente Lula, um elemento político teria se sobreposto à agenda econômica. Ademais, esse elemento político vem carregado com tons ideológicos, o que contraria o pragmatismo da política externa brasileira como política de Estado. Por fim, essa mudança torna mais intangível a aferição de resultados concretos que antes eram mais facilmente contabilizados através da forma pela qual o país se abria à globalização e dela tirava vantagens em termos de acesso a mercados, atração de investimentos, etc.
Em meio à controvérsia, há duas interpretações correntes acerca dessa ruptura promovida pela política externa de Lula. A primeira entende que ela foi ‘capturada’ por um partido político. Seja como contrapeso ao conservadorismo da política macroeconômica doméstica, principalmente no primeiro mandato, seja como estofo ideológico para a nova agenda Sul-Sul, o fato é que tal abordagem indica que a política externa brasileira saiu dos trilhos.
Na segunda, uma “condicionante política” teria subordinado a agenda econômica externa brasileira. Essa agenda, definida através de políticas de Estado para promover o desenvolvimento, teria dado lugar a objetivos e ambições de protagonismo e liderança política. Dessa forma, no plano mais sistêmico, que envolve a relação do Brasil com o mundo, teria havido um descolamento da ação externa brasileira dos interesses nacionais.
No governo Lula, o país assistiu à ascensão de novos protagonistas com demandas ofensivas que passaram a condicionar a política externa brasileira. No caso do setor privado, trata-se de um bloco competitivo que agrupa o agronegócio, a mineração e segmentos da indústria. Esses atores fizeram com que o processo decisório passasse a ser compartilhado entre a presidência da República e o ministério das Relações Exteriores. Além disso, no âmbito da burocracia estatal, o governo Lula criou uma vasta rede de comissões interministeriais, foros e mecanismos de consulta informais que passaram a dividir prerrogativas com o ministério das Relações Exteriores.
Foi também no governo Lula que o Brasil viveu a primeira onda de internacionalização de empresas brasileiras, fato inédito na história do país. Em boa parte dos casos, a expansão ocorreu através de financiamento do BNDES que vitaminou a capacidade dessas empresas em promover aquisições no exterior. Nesses dois aspectos, não é exagero dizer que a política externa deixou de ser uma atribuição quase exclusiva de uma burocracia governamental profissionalizada. Em resumo, há uma mistura entre mudanças estruturais da economia brasileira e maior complexidade na formulação da política externa, com mais atores envolvidos fora do âmbito estatal que passaram a dividir a tomada de decisão.
Houve mudanças também nas relações internacionais. O consenso liberal dos anos 90 em torno da globalização e do multilateralismo foi ultrapassado pelas crises financeiras e por agendas unilaterais no campo da segurança que trouxeram instabilidade política e estresse macroeconômico. O resultado é um panorama de maior complexidade em temas, instâncias de negociação, e atores envolvidos. Hoje fica claro que a roupagem da política mundial não veste mais a realidade da economia global.
Essa dinâmica abriu espaço para a ascensão de alguns países em desenvolvimento. A ausência de liderança norte-americana, as dificuldades de coordenação de políticas na União Européia, e a ascensão chinesa definem o espaço de percepção para a tentativa de protagonismo do presidente Lula. O governo brasileiro percebeu a ‘janela de oportunidades’ e arriscou alguns passos fora da zona de conforto em que a política externa brasileira foi tradicionalmente executada.
De fato, o Brasil esteve em posição privilegiada para o teste de liderança. É o único BRIC que alia democracia, desenvolvimento econômico e políticas de inclusão social bem sucedidas. Esse trunfo doméstico é a substância do protagonismo político almejado por Lula. Em outras palavras, a projeção internacional brasileira é diretamente proporcional às escolhas de políticas públicas domésticas que, no período recente, trouxeram resultados indiscutíveis.
Para aqueles que avaliam a capacidade do governo em projetar os interesses brasileiros no exterior, a política externa de Lula é bem sucedida. O país se tornou um dos maiores produtores mundiais de alimentos e há empresas multinacionais brasileiras ocupando novos mercados. Para os que examinam apenas a tentativa de protagonismo de Lula nos foros internacionais, fica a impressão de muito ativismo político-diplomático e poucos resultados substantivos.
E para os analistas que enxergam a política externa vinculada às políticas domésticas, o legado dos dois mandatos do presidente Lula é paradoxal. Por um lado, o processo de tomada de decisão foi alargado com a inclusão de novos temas e atores. Por outro, o protagonismo do presidente Lula exigiu escolhas feitas em âmbito mais restrito, com viés ideológico mais pronunciado. Certo ou errado, bom ou ruim, o fato é que o teste de liderança do presidente Lula andou junto com a ascensão do Brasil no sistema internacional. Qual será o legado desse movimento é ainda uma questão em aberto.
*Professor de Ciência Política e Relações Internacionais da USP, e pesquisador do Centro de Estudos das Negociações Internacionais (CAENI).
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