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"O sistema todo é feito para deixar que as irregularidades passem", diz pesquisador

O ex-governador do Rio Sérgio Cabral foi preso acusado de comandar um esquema de propinas no Estado; na imagem ele testa bicicletas do sitema Velib em Paris - Carlos Magno/CCS
O ex-governador do Rio Sérgio Cabral foi preso acusado de comandar um esquema de propinas no Estado; na imagem ele testa bicicletas do sitema Velib em Paris Imagem: Carlos Magno/CCS

Paula Bianchi

Do UOL, no Rio

18/11/2016 06h00

A prisão do ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral nesta quinta-feira (17) é, para o historiador Pedro Henrique Pedreira Campos, um dos casos mais recentes do longo histórico de relações promíscuas entre empreiteiras e poder público --relação exacerbada no Rio de Janeiro pelo grande número de obras públicas dos grandes eventos, como Copa e Olimpíada, e pela afluência de verbas decorrentes da exploração do petróleo.

“O sistema todo é feito para deixar que as irregularidades passem”, afirma Campos, professor de história e relações internacionais da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro) e autor do livro "Estranhas Catedrais – As Empreiteiras Brasileiras e a Ditadura Civil-Militar" (Editora da UFF, 2014). Na publicação, ele analisa como o setor de infraestrutura teve participação ativa no golpe de 1964 e conseguiu se manter próximo ao Estado após a redemocratização.

Para o pesquisador, os mecanismos de fiscalização já são desenhados para não funcionarem. “Desde a ditadura, a prática da propina, da corrupção, o recurso à ilegalidade por parte das empresas, é bastante comum. Não quer dizer que seja uma culpa exclusiva dessas empresas ou dos agentes que são os corruptos passivos. Toda a relação entre Estado e empresa no Brasil parece funcionar sob essa lógica”, afirma.

Campos, no entanto, é otimista em relação aos novos rumos que as investigações do Ministério Público e do Judiciário têm apontado. “A novidade agora é que isso está sendo punido de maneira drástica.” 

Pedro Henrique - Daniel Marenco/Folhapress - Daniel Marenco/Folhapress
Campos é autor do livro "Estranhas Catedrais - As Empreiteiras Brasileiras e a Ditadura Civil-Militar", em que analisa como o setor de infraestrutura teve participação ativa no golpe de 1964
Imagem: Daniel Marenco/Folhapress
UOL - O senhor ficou surpreso ao acordar e se deparar com a prisão do ex-governador do Estado Sérgio Cabral um dia após a prisão de outro ex-governador, Anthony Garotinho?

Pedro Henrique Campos - Em parte, sim. Eu notava, como várias pessoas, um caráter muito seletivo da Operação Lava Jato. Isso se alargou, em termos, nas últimas semanas com Eduardo Cunha, Garotinho e Cabral sendo presos. Por outro lado, no que diz respeito às acusações, ao montante de denúncias, ao que parece, documentadas, sobre irregularidades, ilegalidades, práticas corruptas dessas três figuras, não há nenhuma grande surpresa. São pessoas que são conhecidas justamente por uma folha corrida bastante longa de práticas corruptas em sua trajetória política.
 

A denúncia contra o ex-governador Cabral afirma que ele ficava com 5% dos valores dos contratos firmados entre governo e empreiteiras. Outro 1% era destinado à Secretaria de Estado de Obras (Seobras) e recebia o nome de "taxa de oxigênio". A propina em obras públicas é uma regra?

O que notei em minhas pesquisas é que mecanismos ilegais, irregulares são comuns em obras públicas envolvendo estatais e a contratação de empresas privadas. Verificamos que, desde a ditadura --não analisei com detalhamento o período pós-ditadura--, a prática da propina, da corrupção, o recurso à ilegalidade por parte das empresas, é bastante comum. Não quer dizer que seja uma culpa exclusiva dessas empresas ou exclusiva dos agentes que são os corruptos passivos. Toda a relação entre Estado e empresa no Brasil parece funcionar sob essa lógica.

Como isso escapa aos mecanismos de controle? As licitações já vêm com algum tipo de fraude?

A impressão que eu tenho é de que todo o sistema, toda a lógica do sistema, é feita para essas práticas irregulares passarem. A novidade agora é que isso está sendo punido de maneira drástica. Historicamente, esses mecanismos de fiscalização são feitos para não funcionarem, para deixar passar, permitir que essa lógica se perpetue. Em beneficio desses corruptos passivos, mas, também, dos corruptos ativos: empresários que têm suas ligações políticas, seus contatos, sua presença junto a partidos, a certas figuras políticas, que se perpetuam hoje como as maiores empreiteiras do país dado ao capital político de que dispõem.

Em 2011, um grave acidente de helicóptero, que matou seis pessoas, entre elas a namorada de Marco Antônio Cabral, filho de Cabral, e a esposa do empreiteiro Fernando Cavendish, expôs relações do ex-governador com empresários de construtoras. Até que ponto um governante pode ter relações próximas com uma empreiteira?

Acho, particularmente, que não é da boa prática política, porque isso gera uma contradição de interesses. Quando Cabral teve aquele acidente de helicóptero com o Cavendish e acusaram ele de ter uma amizade com empreiteiros ele falou, ‘eu escolho minhas amizades’. Legalmente, a amizade em si não tem nenhum problema. No sentido ético, parece bastante questionável. Como pensar que um então governador de um Estado rico como o Rio, cheio de obras tendo em vista os grandes eventos, tenha uma amizade com um empreiteiro que, por acaso, era o empreiteiro que mais fazia obras no Estado --no caso, a Delta-- e isso fosse algo inocente, altruísta, de uma relação pautada basicamente na afinidade pessoal dos dois? Parece, no mínimo, muito suspeito. Eu entendo que a boa prática do serviço público exige um distanciamento entre empresários e esses servidores, lembrando que governadores e pessoas com mandatos são servidores públicos.

Na metade do ano, o Rio decretou calamidade pública em função da grave situação financeira. É possível traçar uma relação entre a crise no Estado e os casos de corrupção?

Está claro que essa crise tem um fundo político que abala o poder do PMDB, do governo estadual e do governo federal. Parece muito improvável que isso tenha corrido ao largo do conhecimento do então vice-governador, Luiz Fernando Pezão. Tudo aponta para o contrário. Isso coloca o governo estadual e o federal em uma crise bastante aguda. Já a crise financeira do Estado, parece ter relação com uma série de fatores --entre os quais, a opção por esses grandes eventos, um grande uso de dinheiro público para fazer eventos de entidades privadas, lembrando a Copa Fifa de futebol, as Olimpíadas do COI [Comitê Olímpico Internacional], que foram grandes projetos, grandes eventos, montados por entidades privadas, com grande aporte de recursos públicos, pagos por toda a população. A prioridade passou a ser os grandes eventos, com prejuízo para saúde, educação, as áreas sociais. Há também as isenções fiscais nos setores mais diversos possíveis, e, claro, os desvios de recursos públicos. Não sei se esses desvios seriam o núcleo da crise, mas são valores bastante expressivos, apropriados por algumas pessoas, em prejuízo da população em geral.
 

Você vê alguma especificidade na relação entre empreiteiras e o poder público no Rio?

Não diria uma especificidade. Mas o Rio guarda uma série de peculiaridades, que faz com que esse processo que atravessa o país, dessa relação entre o poder público e empreiteiras, seja potencializado no Estado. Para começar, o Rio é o Estado sede das atividades de petróleo no Brasil, que envolvem muitos recursos e, óbvio, a economia do petróleo, não só no Brasil, mas no mundo, tem práticas muito corruptas entre empresas e aparelhos do Estado. Há também os grandes eventos realizados principalmente com sede no Rio, a Copa e as Olimpíadas, mas, também, os Jogos Mundiais Militares, a Jornada Mundial da Juventude, que fizeram com que muitas obras públicas fossem realizadas. Não é à toa que no auge do crescimento econômico do país e do Rio as empreiteiras trouxeram suas sedes para a cidade. O Rio também foi capital, uma capital esvaziada, que tentou buscar novas funções que dessem vigor para a economia. Os grandes eventos foram um caminho que o governo escolheu. São muito questionáveis os usos dos recursos públicos, a marginalização de populações que ocorreram em decorrência desses eventos. A economia fluminense sofre agudamente uma crise que é nacional, mas o Rio parece estar no epicentro justamente por escolhas equivocadas dos gestores estaduais.