'Poder moderador': polêmica do art. 142 remonta ao fim da ditadura militar
Laila Nery
Colaboração para o UOL, em São Paulo
08/04/2024 19h10Atualizada em 11/04/2024 16h11
A redação do artigo 142 da Constituição de 1988 era alvo de polêmicas desde a Assembleia Nacional Constituinte. Setores identificados com o regime autoritário militar que governou o Brasil por 21 anos estavam de olho no texto. Mais recentemente, o artigo foi usado para defender que as Forças Armadas são um poder moderador da República, tese enterrada pelo STF (Supremo Tribunal Federal), em decisão unânime, nesta segunda-feira (8).
O que aconteceu
O artigo 142 define o papel das Forças Armadas —composta por Aeronáutica, Marinha e Exército. A Constituinte aconteceu era um momento sensível para o Brasil, de transição para a democracia, quando políticos e setores, incluindo apoiadores da ditadura militar, disputavam influência na elaboração da nova Carta.
Proposta original foi descartada por limitar o papel dos militares à defesa externa do país. A redação sugerida pelo deputado constituinte José Genoíno (PT) foi então substituída por outra, de autoria de Fernando Henrique Cardoso (PSDB). "Na chamada 'emenda FHC', as Forças Armadas cuidam da defesa nacional e dos poderes constitucionais", disse Genoíno ao UOL, em 2022.
Ainda assim, setores insistiam na incorporação do conceito vago de "defesa da lei e da ordem" ao texto, o que acabou acontecendo. Também defendiam um suposto papel moderador dos militares sobre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. A expressão "poder moderador" não foi incluída no artigo 142, o que não impediu interpretações de que ele existia mesmo assim.
A discussão sobre o artigo 142 permaneceu muito tempo nas sombras, travada apenas entre especialistas em direito constitucional e militares. Até maio de 2020, quando um artigo do jurista Ives Gandra Martins dizia que a Constituição concede de fato às Forças Armadas o papel de "poder moderador", em caso de desequilíbrio entre os Três Poderes.
Bolsonaro e aliados usaram a interpretação distorcida do artigo para tentar mudar o resultado das eleições de 2022, de acordo com a Polícia Federal. Agora, o STF enterrou de vez essa tese, em ação apresentada pelo PDT (Partido Democrático Trabalhista) em 2020.
O que diz o artigo 142
As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
Interpretações erradas
A interpretação distorcida da lei se dá sobretudo no trecho sobre a "garantia da lei e da ordem". Foi o que explicou o relator do caso no STF, o ministro Luiz Fux, em seu voto.
Depois da derrota de Bolsonaro, notícias falsas citavam o artigo 142 para propagar que o Exército poderia ser convocado em breve. As publicações afirmavam que seria necessário uma espera de "72 horas de manifestações públicas sem excitação do presidente" para "dar artigo 142" ou que o presidente poderia "assinar" o artigo 142 "para intervenção pontual no Sistema Eleitoral Brasileiro". Mas nada disso está no artigo 142.
O suposto "poder moderador" das Forças Armadas já havia sido tema de decisões no STF. Em junho de 2020, por exemplo, o ministro Luís Roberto Barroso negou seguimento a um pedido de um advogado paulista solicitava a regulamentação do artigo 142. À época, o ministro descartou a possibilidade de qualquer interpretação do artigo no sentido de que as Forças Armadas teriam uma posição moderadora.
Forças Armadas não são um Poder da República, mas sim uma instituição. No julgamento encerrado nesta segunda, Fux afirmou que "as Forças Armadas não são um poder da República, mas uma instituição à disposição dos poderes constituídos para, quando convocadas, agirem instrumentalmente em defesa da lei e da ordem".
Sistema democrático não precisa de mediação militar, diz historiador. Especialista no período da ditadura militar, o professor da UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso) Ary Albuquerque Cavalcanti Junior afirma que a interpretação sobre o poder moderador não fazia sentido.
Ainda vivemos sobre os escombros da ditadura militar que assolou nosso país entre 1964 e 1985. Dessa forma, os três Poderes precisam ser respeitados e autônomos, algo que, durante o período mencionado, nos foi retirado. Logo, não faz sentido um poder moderador."
Ary Albuquerque Cavalcanti Junior, historiador
Atribuir aos militares um poder superior ao civil prejudicaria a liderança das tropas pelo presidente e o ministro da Defesa. Segundo Samuel de Jesus, especialista em militarismo, defesa e segurança e professor da UFMS (Universidade Federal do Mato Grosso do Sul), "cada comandante [Exército, Marinha e Aeronáutica] tem trajetória de décadas nas Forças Armadas. O ministro, que normalmente não tem ascendência dentro do ciclo militar, dificilmente conseguiria impor a sua liderança."
Desde Getúlio Vargas, passando por João Goulart e por toda a ditadura militar, sempre houve o apoio e a garantia dos militares ao governo e à sua destituição, caso eles não estivessem de acordo. Isso foi o que fez com que os militares acreditassem que estavam acima [dos civis]. Eles se consideram incorruptíveis e virtuosos e colocam os políticos como sujos e inaptos para o governo.
Samuel de Jesus, especialista em militarismo, defesa e segurança e professor da UFMS
Mito do poder moderador das Forças Armadas tem raízes no "bonapartismo", diz Jesus. "O fenômeno que encontramos na América Latina é similar ao bonapartismo. Quando civis perdem a possibilidade de conduzir a política, devido à ascensão dos movimentos socialistas, o golpe militar é considerado", diz. O termo é referência ao general Napoleão Bonaparte, imperador da França de 1804 a 1814 e por um breve período em 1815.
Leia a íntegra do artigo 142 da Constituição Federal
Confira aqui a íntegra do texto da Constituição Federal de 1988.
Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
1º Lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas.
§ 2º Não caberá habeas corpus em relação a punições disciplinares militares.
3º Os membros das Forças Armadas são denominados militares, aplicando-se-lhes, além das que vierem a ser fixadas em lei, as seguintes disposições:
I - as patentes, com prerrogativas, direitos e deveres a elas inerentes, são conferidas pelo Presidente da República e asseguradas em plenitude aos oficiais da ativa, da reserva ou reformados, sendo-lhes privativos os títulos e postos militares e, juntamente com os demais membros, o uso dos uniformes das Forças Armadas;
II - o militar em atividade que tomar posse em cargo ou emprego público civil permanente, ressalvada a hipótese prevista no art. 37, inciso XVI, alínea "c", será transferido para a reserva, nos termos da lei;
III - o militar da ativa que, de acordo com a lei, tomar posse em cargo, emprego ou função pública civil temporária, não eletiva, ainda que da administração indireta, ressalvada a hipótese prevista no art. 37, inciso XVI, alínea "c", ficará agregado ao respectivo quadro e somente poderá, enquanto permanecer nessa situação, ser promovido por antiguidade, contando-se-lhe o tempo de serviço apenas para aquela promoção e transferência para a reserva, sendo depois de dois anos de afastamento, contínuos ou não, transferido para a reserva, nos termos da lei;
IV - ao militar são proibidas a sindicalização e a greve;
V - o militar, enquanto em serviço ativo, não pode estar filiado a partidos políticos;
VI - o oficial só perderá o posto e a patente se for julgado indigno do oficialato ou com ele incompatível, por decisão de tribunal militar de caráter permanente, em tempo de paz, ou de tribunal especial, em tempo de guerra;
VII - o oficial condenado na justiça comum ou militar a pena privativa de liberdade superior a dois anos, por sentença transitada em julgado, será submetido ao julgamento previsto no inciso anterior;
VIII - aplica-se aos militares o disposto no art. 7º, incisos VIII, XII, XVII, XVIII, XIX e XXV, e no art. 37, incisos XI, XIII, XIV e XV, bem como, na forma da lei e com prevalência da atividade militar, no art. 37, inciso XVI, alínea "c";
X - a lei disporá sobre o ingresso nas Forças Armadas, os limites de idade, a estabilidade e outras condições de transferência do militar para a inatividade, os direitos, os deveres, a remuneração, as prerrogativas e outras situações especiais dos militares, consideradas as peculiaridades de suas atividades, inclusive aquelas cumpridas por força de compromissos internacionais e de guerra.