Derrubada pelo Congresso, 'saidinha' será decidida caso a caso em tribunais
Os tribunais de Justiça dos estados vão decidir se os presos do regime semiaberto continuarão saindo temporariamente, nas chamadas "saidinhas", apesar de o Congresso ter derrubado esse direito.
O que aconteceu
A decisão sobre manter ou suspender as saídas temporárias fica a cargo dos juízes dos tribunais estaduais. O UOL entrou em contato com os 26 tribunais de Justiça dos estados e do Distrito Federal para saber, na prática, se as próximas saídas temporárias ocorrerão ou não. Em meio às mudanças, cada estado tem formado um entendimento próprio sobre o direito dos presos.
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A alteração na legislação provoca um ambiente de incertezas. "A proposição legislativa do Congresso Nacional traz uma série de inseguranças jurídicas", afirma André Carneiro Leão, vice-presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos, órgão ligado ao Ministério dos Direitos Humanos. "Quando se faz uma mudança pontual como essa, acaba criando-se uma série de problemas, já que ela não pode ser analisada de forma isolada da Constituição."
O impasse se dá uma vez que a lei que proíbe as saídas temporárias foi aprovada pelo Congresso, mas é objeto de questionamento no STF. No início do mês, o ministro André Mendonça autorizou a saída temporária de um preso condenado por roubo, ressaltando que a lei não pode retroagir para prejudicar o réu. O entendimento, porém, não reflete a posição de todos os ministros do Supremo.
Ações no STF questionam a constitucionalidade da mudança. As três ações diretas de inconstitucionalidade foram enviadas pela Associação Nacional da Advocacia Criminal, pelo Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e pela Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos —todas estão sob a relatoria do ministro Edson Fachin. O STJ (Superior Tribunal de Justiça) não se pronunciou sobre um possível entendimento.
A constitucionalidade do fim das saidinhas é questionada porque elas são uma das medidas que garantem o princípio da individualização das penas, que está na Constituição. Além disso, o STF já considerou que o sistema prisional representa um "estado de coisas inconstitucional", diz. "Aumentar o tempo que os cidadãos permanecem em prisões degradantes amplia esse estado de coisas inconstitucional, violando, desse modo, o artigo que veda as penas cruéis e o do princípio da dignidade da pessoa humana", afirma.
Juízes dos tribunais de Justiça terão autonomia para decidir sobre saídas temporárias. "A ameaça de um juiz decidir suspender o direito [saída temporária] existe enquanto a lei não for declarada inconstitucional", diz Leão. "Se o tribunal não reconhecer a inconstitucionalidade, há possibilidade de os juízes aplicarem a lei para as próximas saídas temporárias."
Tribunais dizem analisar caso a caso
O CNJ (Conselho Nacional de Justiça) afirma que ainda não há uma regulamentação do órgão sobre as saídas temporárias. De acordo com o conselho, um consenso só poderá ser formulado após a decisão do STF. "A decisão será de observância obrigatória por todas as magistradas e magistrados do país", afirmou o órgão por meio de nota.
Em Minas Gerais, a decisão ficará a cargo das varas de execução penal. "Essa informação é individual de cada vara de execução penal, pois cada unidade judiciária de execução penal tem essa prerrogativa", informou o TJ do estado.
O Distrito Federal decidiu que a nova legislação valerá somente para pessoas presas depois da execução da lei. Segundo o tribunal, a lei "não poderá atingir a situação do custodiado que praticou a infração penal antes de sua vigência." O tribunal disse ainda que o calendário das saídas está mantido para as pessoas presas que praticaram o crime antes da vigência da lei. No caso das pessoas presas depois da lei, a Vara de Execução Penal analisará o caso para tomar uma decisão.
São Paulo manteve as saídas temporárias de junho, mas o TJ-SP disse que os juízes analisarão "caso a caso". "Não é possível adiantar essas futuras decisões porque a concessão dos benefícios segue alguns requisitos que serão verificados pelos magistrados no momento oportuno, assim como serão analisados os reflexos da lei para cada sentenciado."
Justiça do Rio Grande do Sul diz analisar processo a processo. Segundo o tribunal gaúcho, os casos são analisados pelos juízes das varas de execução criminal "após manifestação do MP e da defesa, e observando-se os dados do caso concreto (data do delito, tipo de delito, prévia decisão autorizativa de saída temporária etc."
A Justiça do Ceará também informou que as saídas ocorrem de forma individualizada. "Os juízes das Varas de Execução Penal analisam a situação de cada apenado para conceder ou não o benefício", disse o órgão.
Pernambuco manteve as saídas temporárias. O Tribunal de Justiça do estado afirmou que "os juízes das execuções penais estão deliberando sobre o assunto para tomar uma decisão em conjunto sobre como será posteriormente."
Os tribunais do Paraná e do Amazonas disseram que ainda não têm um entendimento sobre o tema. "As próximas saídas previstas para pessoas em execução de pena estão mantidas, uma vez que o assunto está em discussão no Congresso", disse o TJ-PR. Já o tribunal amazonense disse que não tem uma posição a respeito. Os tribunais não responderam à reportagem.
Alagoas informou que não há saída temporária no estado, uma vez que não há unidade prisional do semiaberto. "A unidade ainda está para ser entregue. Os presos desse regime ficam no semiaberto harmonizado, que é a prisão domiciliar com raio zero. Eles são monitorados eletronicamente", disse o TJ-AL.
A Justiça de Rondônia disse que a administração das saídas temporárias é da Secretaria de Justiça do Estado. "Na decisão do magistrado são estipuladas a forma de aplicação no tempo (ou seja, se a lei deve ou não retroagir para alcançar a situação de crimes cometidos antes da entrada em vigor da nova lei) e a forma de execução das saídas." Mas, segundo o tribunal, as saídas temporárias do Dia das Mães, em maio, não ocorreram.
Mais dificuldade para as famílias e pedidos na Justiça
Pessoas presas terão dificuldade de recorrer às Cortes, segundo Leão. "Muitas permanecerão presas e não poderão acessar um direito previsto na Constituição, que é a progressão de regime", afirma ele. "O CNDH espera que, para garantir segurança jurídica, o STF analise a constitucionalidade da lei", diz o vice-presidente do órgão. Ele lembra ainda que o Brasil já foi condenado duas vezes no Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
Outra consequência da ausência de um entendimento específico é o aumento de casos nos tribunais. "O número de pessoas que vão recorrer a defensores públicos e advogados vai aumentar. A demanda dos tribunais, que já estão sobrecarregados, vai aumentar. É uma lei disfuncional tanto em relação à execução dos casos quanto no que se refere à tramitação."
Não há entendimento se a mudança legislativa valerá para pessoas presas antes da lei. "Em matéria de direito penal, a lei não retrocede e, portanto, não se aplica a casos existentes antes da legislação", explica Leonardo Sica, vice-presidente da OAB de São Paulo. "Mas, em matéria de direito processual, a lei pode retroceder. Nesse sentido, há uma disputa de entendimentos."
Familiares de presos sob insegurança
Familiares de pessoas presas em São Paulo relataram apreensão em relação às saídas temporárias — mantidas pela Justiça de São Paulo no mês de junho. As saídas começaram na terça-feira (11) e se encerram nesta segunda-feira (17). "A proibição é um retrocesso que afeta muito a execução penal. Se for para ser aprovada [a mudança legislativa], que seja válida para quem for preso e condenado após a lei", afirma Viviane Balbuglio, pesquisadora e integrante da Amparar (Associação de Amigos e Familiares de Presos e Presas).
"Não sabemos como os juízes vão atuar, há um cenário de incertezas muito grande", diz a advogada. Embora as saídas temporárias sejam um direito individualizado, Viviane afirma que as unidades prisionais organizam listas de pessoas consideradas aptas para sair. "As pessoas estão com muito medo das interpretações distintas que podem surgir", afirma.
Com a mudança na legislação, a advogada afirma que muitos presos podem ser impactados. Segundo ela, há presos que teriam direito ao semiaberto, mas cumprem pena no regime fechado. Há também presos do regime fechado que aguardam a progressão e pessoas que estão no regime fechado, mas foram condenadas sob um regime jurídico que permite a saída. Há também presos que acabaram de progredir para o semiaberto, mas ainda não tiveram o direito à saída. "Todas essas pessoas privadas de liberdade não têm certeza de como serão afetadas", diz.
Próximas saídas vão exigir monitoramento, diz advogada. "Precisamos acompanhar se os pedidos estão sendo feitos. Como as estruturas legislativas têm retirado direitos, a troca com as famílias vai precisar ser muito maior para que elas tenham mais consciência desse cenário."