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Monitorados pela 'Abin paralela' relatam passo a passo de perseguições

Leonardo Leal e Mayara Stelle, fundadores do Sleeping Giants Brasil Imagem: Henry Milleo/UOL

Do UOL, em São Paulo

18/07/2024 04h00Atualizada em 18/07/2024 10h35

Jornalistas e servidores públicos monitorados pela chamada 'Abin Paralela' do governo Bolsonaro viram com perplexidade as revelações feitas pela Operação Última Milha, da Polícia Federal. Eles conversaram com o UOL sobre os anos de perseguição que sofreram quando a Abin (Agência Brasileira de Inteligência) agia nas sombras.

O que aconteceu

A PF afirma que houve uso ilegal da Abin no governo Bolsonaro. Nesta segunda fase da Operação Última Milha, na última quinta-feira (11), cinco pessoas foram presas: o policial federal Marcelo Bormevet e o sargento do Exército Giancarlo Rodrigues, que atuavam na Abin, os influenciadores Richards Pozzer e Rogério Beraldo de Almeida e o ex-assessor de comunicação da Presidência Matheus Sposito.

A PF aponta que os influenciadores espalhavam conteúdos falsos nas redes sociais a partir de informações recebidas da Abin. Richards Pozzer e Rogério Beraldo, que foram presos, publicaram notícias falsas ou distorcidas contra ministros do STF, senadores da CPI da Covid, jornalistas e agências de checagem de notícias, entre outros alvos. A Abin paralela enviava, ainda, dados pessoais de opositores do governo aos influenciadores bolsonaristas.

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Um dos grupos monitorados foi o Sleeping Giants Brasil. O coletivo, que faz campanhas virtuais contra sites e empresas que disseminam fake news e discursos de ódio, foi monitorado desde novembro de 2020. Naquele mês, Bormevet informou a Rodrigues, seu subordinado, que recebeu um pedido da diretoria da Abin para "aprofundar" um relatório sobre o Sleeping Giants porque os nomes dos criadores da página ainda não eram conhecidos à época.

A 'Abin paralela' tinha acesso até à localização das pessoas sob vigilância. O monitoramento, segundo a PF, era feito por meio do sistema First Mile, uma ferramenta que identifica os celulares dos alvos e fornece as coordenadas geográficas deles a partir dos aparelhos.

Imagem: Arte/UOL

O caso Sleeping Giants

A PF já havia arquivado um inquérito sobre o Sleeping Giants quando o coletivo entrou na mira da 'Abin paralela'. Uma semana após o grupo ser fundado, em maio de 2020, a PF tentou descobrir os responsáveis pela página. Esse inquérito, porém, acabou arquivado em julho do mesmo ano, a pedido do MPF (Ministério Público Federal).

Os criadores do Sleeping Giants saíram do anonimato em dezembro de 2020, com uma entrevista ao jornal Folha de S. Paulo. Logo após a publicação da reportagem, o casal Leonardo Leal e Mayara Stelle, à época com 22 anos, passou a ser atacado nas redes. Influenciadores afirmavam, sem fundamentos, que os dois não eram os verdadeiros donos da iniciativa.

Um mês após a entrevista, em janeiro de 2021, o Sleeping Giants foi atacado pelo influenciador Richards Pozzer. Em uma mensagem apreendida pela PF, Bormevet encaminhou a Rodrigues uma publicação de Pozzer no Twitter, atual X, acusando o coletivo de ser "laranja" do YouTuber Felipe Neto — algo que nunca foi comprovado. A postagem teve mais de 2.600l curtidas e 800 compartilhamentos.

Em resposta a Bormevet, Rodrigues afirmou que foi ele quem municiou Pozzer com os dados. A publicação do influenciador incluía coordenadas geográficas de um celular que, aparentemente, foram extraídas pelo sistema First Mile, usado pela 'Abin paralela'. Rodrigues escreveu a Bormevet: "Kkkkk fui eu que passei para ele", referindo-se aos dados enviados a Pozzer.

Pozzer fez ataques virtuais ao casal pelo menos até março de 2021. Em outras publicações, ele ameaçou expor dados pessoais do casal se eles não abandonassem uma mobilização virtual à época.

Imagem: Arte/UOL

Ameaças e mudança de cidade

Leal disse ao UOL que o Sleeping Giants foi atacado nas redes desde sua criação. "É natural que sejamos alvo de ataques, mas da forma como mostrou a investigação foi uma coisa institucionalizada", afirmou. O fundador relata que o coletivo sabia que pessoas e perfis difundiam informações falsas, "mas não tinha como imaginar essa dimensão".

Em 2020, Pozzer chegou a se mudar para a mesma cidade em que Leal vivia no interior do Paraná, segundo o cofundador do coletivo. "Descobrimos que ele postava fotos da nossa cidade com ameaças. Quando gravamos o documentário Extremistas.br [Globoplay], ele foi entrevistado em um lugar a 15 minutos de onde eu morava com a minha família", relata.

Familiares tiveram de se mudar de endereço por causa das ameaças. Leal lembra que teve dificuldades em explicar aos parentes que teriam de sair de casa porque estavam sendo perseguidos. Segundo o diretor do Sleeping Giants, eles tiveram que passar o Natal de 2020 separados e ficaram três meses em outro endereço.

Procurada pelo UOL, a defesa de Pozzer nega que ele tenha perseguido Leal. O advogado Jeffrey Chiquini, que defende o investigado, afirma que ele "não possuía contato algum com autoridades e militares". O relatório da PF, no entanto, mostra que ele trocou várias mensagens com Giancarlo Rodrigues, da Abin, e chegou a afirmar que tinha uma "linha direta" com Bolsonaro por meio de dois assessores do Planalto.

É muito absurdo porque quando observamos o que aconteceu em 2021, pensamos que esses dados eram lançados na internet e compartilhados em perfis. Mas ver o Pozzer brifado pelo Giancarlo faz a gente olhar com muito mais cuidado, entendendo que houve um monitoramento ilegal do Sleeping Giants instrumentalizado pelo governo.
Leonardo Leal, co-fundador do coletivo Sleeping Giants

Richards não possuía contato algum com autoridades e militares. Richards apenas, nas horas vagas, realizava pesquisas e consultas públicas sobre agentes públicos sujeitos a probidade e moralidade pública, exercendo direito constitucional. Richards nunca teve acesso a documentos sigilosos. Richards sempre morou na mesma cidade e trabalhou na mesma empresa de engenharia. Estamos surpresos com essas informações tão desconexas e distantes da realidade. Estão acusando um cidadão honesto e inocente
Nota da defesa de Richards Pozzer

Agentes do Ibama foram monitorados por dar 'trabalho à gestão'

A PF menciona que três servidores do Ibama foram espionados. Em uma das mensagens apreendidas pela PF, no dia 28 de março de 2022, um agente da Abin recebeu um pedido para "verificar a ficha corrida" dos fiscais ambientais porque eles estariam "dando trabalho à gestão", ou seja, ao governo Bolsonaro.

Um dos alvos afirma que sofreu uma represália dias após reconhecer a suposta espionagem no inquérito divulgado na semana passada por Alexandre de Moraes. É o servidor Hugo Leonardo Mota Ferreira, que auxiliou investigações da PF contra exportação ilegal de madeira. A Operação Akuanduba, como foi batizada, levou à queda do então ministro do meio ambiente Ricardo Salles (PL-SP), hoje deputado federal.

Ferreira afirma que sofreu um processo interno por ter atuado nessa operação. No dia 5 de abril de 2022, uma semana após o pedido feito à Abin para que ele e os colegas fossem monitorados, conforme relatório da PF, o Ibama abriu um PAD (Processo Administrativo Disciplinar) contra Ferreira com a justificativa de que ele deu entrevistas à imprensa sobre a exportação ilegal de madeira.

O processo disciplinar acabou arquivado por falta de materialidade. As mensagens apreendidas pela PF indicam que os agentes da Abin procuraram informações que pudessem comprometer Ferreira. Segundo o servidor, porém, não encontraram nada além do fato de que ele deu entrevistas sobre a Operação Akuanduba.

A Operação Akuanduba levou à queda do ministro Salles e outros gestores da área ambiental. Como represália, abriram um processo disciplinar contra mim por motivo fútil, alegando que eu havia sido desleal com a instituição ao dar entrevista sobre a operação. A data da instauração do processo está alinhada com os atos do contexto da espionagem
Hugo Leonardo Mota Ferreira, servidor do Ibama

Operação Akuanduba, que investigou contrabando de madeira na gestão Salles, levou à queda do então ministro do Meio Ambiente Imagem: Reprodução/Twitter

Segurança armada para a família

O jornalista Leandro Demori foi monitorado pela Abin em julho de 2019, quando chefiava a redação do site The Intercept Brasil. Segundo reportagem do jornal O Globo, ele entrou na mira dos agentes após o início da série de reportagens "Vaza Jato", que revelou diálogos entre o ex-juiz e hoje senador Sergio Moro (União-PR) e o ex-procurador Deltan Dallagnol.

Demori foi alvo da página "Pavão misterioso", que teria sido alimentada com dados fornecidos pela Abin. A conta, anônima, foi lançada no X pouco depois do início da Vaza Jato e disseminou notícias falsas sobre um suposto acordo para a venda de mandato do ex-deputado federal Jean Willys (PSOL-RJ) ao seu sucessor na Câmara, David Miranda, morto em 2023. Miranda era marido de Glenn Greenwald, fundador do The Intercept.

O jornalista lembra que mandou mensagem a Leonardo Leal, fundador do Sleeping Giants, em maio de 2020. Segundo ele, a mensagem era privada via Instagram, com um pedido de entrevista sobre a atuação do coletivo. No mesmo dia em que enviou o texto, foi acusado pelo blogueiro Oswaldo Eustáquio, investigado desde 2020 e preso por envolvimento com os atos golpistas de 8 de janeiro, de "estar por trás" do Sleeping Giants — que ainda era anônimo à época.

"Comecei a perceber um monitoramento físico e digital", diz Demori. Ele lembra que passou a fazer viagens com a família acompanhado por seguranças. "A gente adapta a rotina, mas não é algo confortável", afirma. Nos eventos que organizava, o jornalista começou a instalar detectores de metais — e chegou a flagrar pessoas armadas em duas ocasiões.

A família sofreu consequências das ameaças e do clima de insegurança. Demori diz que à época o filho tinha pouco mais de um ano e já vivia a rotina de protocolos de segurança. Em 2022, ele conta que decidiu morar um tempo na Itália. "Mantive a rotina de jornalista e desmontamos o esquema de segurança", diz.

Há ainda muitas coisas que não sabemos, mas agora elas fazem sentido. Não eram civis fazendo buscas e disseminando informações, era um aparato de Estado funcionando para alimentar o esquema.
Leandro Demori, jornalista monitorado

"Incredulidade completa"

A jornalista Mônica Bergamo, da Folha de S.Paulo, também é citada no relatório da PF. Em fevereiro de 2021, os agentes produziram uma informação falsa para tentar vincular Bergamo e um grupo de políticos, como o ex-governador de São Paulo João Doria e o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia, a Adélio Bispo, autor da facada em Bolsonaro.

Os agentes informaram a um blogueiro que Mônica e os políticos estariam junto com os advogados de Adélio em um grupo do Wickr, um aplicativo de mensagens. A intenção, segundo a PF, era insinuar que eles teriam alguma relação com o autor do atentado a Bolsonaro. A informação sobre o suposto grupo em comum que eles tinham no Wickr foi repassada à página "Vlog do Rui", cujo dono não foi alvo da operação da PF na semana passada.

As informações falsas associam Bergamo aos demais nomes. Além disso, afirmam que haveria uma troca de conversas por meio de um aplicativo. Ao UOL, ela diz que a intensidade dos ataques no período a que o relatório se refere (2020) foi muito maior. "Particularmente, não fico com medo, mas minha família sim. Isso se reflete na nossa vida, na vida dos nossos familiares".

Ao UOL, Bergamo relatou "incredulidade completa" ao saber detalhes do relatório. "Sensação foi de desalento, de perplexidade de isso ter voltado a acontecer no Brasil", afirma. A jornalista, que nega ter participado de um grupo de conversas com adversários do ex-presidente, as mensagens não tiveram impacto em seu trabalho. "Sigo entendendo que são personagens do poder e que eu tenho que fazer a cobertura deles."

Familiares de autoridades monitoradas disseram ao UOL que sentiram revolta com as revelações da PF. Um parente de um ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) citado no relatório afirmou que não foi impactado pela difusão de informações falsas, mas que o monitoramento provocou incômodo e sensação de insegurança nos familiares.

A operação First Mile já teve duas fases — a primeira foi em janeiro deste ano. Além de investigar os ataques a adversários do governo, a PF apura se aliados e familiares de Bolsonaro foramt beneficiados. Um trecho do relatório afirma que a 'Abin paralela' investigou auditores da Receita Federal que apuravam as suspeitas de "rachadinha" do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ).

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