Governo anuncia retirada de sigilo de documentos, mas dados vêm tarjados
O governo Lula diz ter retirado o sigilo de documentos públicos pedidos via LAI (Lei de Acesso à Informação), mas mantém as tarjas de censura nas informações. Os registros de entrada e saída dos Palácios da Alvorada e do Jaburu e da Granja do Torto, entre 2020 e 2021, na gestão Jair Bolsonaro (PL), tiveram cobertos todos os dados.
O que aconteceu
Os documentos constam como "desclassificados". Reportagem solicitou documentos que estão no "rol de informações desclassificadas" pelo GSI (Gabinete de Segurança Institucional), divulgado pelo próprio governo em 2023 e que segue público na página oficial do Executivo.
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O que tem essa denominação? Um documento que está desclassificado significa que o poder público reanalisou os critérios que haviam sido aplicados para que ele fosse considerado de acesso restrito em algum grau e decidiu que ele pode ter transparência.
Na maioria dos registros, só é possível ver os dados e o cabeçalho referente ao GSI, nada mais. Mesmo considerados como de sigilo retirado, não é possível ter acesso aos nomes dos visitantes nem mesmo dos jornais assinados ou de encomendas como flores recebidas nas residências oficiais durante o governo Bolsonaro.
A Casa Civil explica que uma coisa não impede a outra. Ao UOL a pasta e outros órgãos do governo envolvidos no caso argumentaram que a desclassificação "não descaracteriza o sigilo" —este previsto por lei, como é o caso dos registros de entrada na residência oficial. O mesmo não se aplica, por exemplo, ao Palácio do Planalto, onde os pontos já foram liberados.
Registros do Alvorada são sigilosos, diz CGU (Controladoria-Geral da União). Em enunciado publicado no início do ano passado, o órgão manteve os registros de entrada e saída em residências oficiais como sigilosos. Ao UOL, a pasta detalhou ainda que o sigilo não cai porque trocou de governante.
O assunto está em debate no governo. A CGU já enviou à Casa Civil um projeto que busca alterar a LAI para estabelecer critérios mais claros para a classificação do sigilo e tentar acabar com o sigilo de 100 anos, amplamente adotado por Bolsonaro, o que foi uma promessa de campanha do presidente Lula (PT).
"Desclassificados"
UOL solicitou via LAI um bloco de documentos relativos às portarias dos palácios presidenciais. Reportagem solicitou 18 documentos sobre "controle de acesso em áreas presidenciais" que constavam na relação divulgada pelo governo federal como desclassificados. O pedido foi concedido, mas, na prática, os documentos carimbados como "desclassificados" se resumem, em sua maioria, a páginas tarjadas de preto.
Maioria dos documentos traz apenas o intervalo de datas e a portaria na qual o acesso ficou registrado. Alguns documentos ainda descrevem que os relatórios se tratam de acessos de autoridades, de seguranças, familiares do presidente ou simplesmente "entrada e saída de pedestres". Há ainda relatórios específicos sobre entrada de "volumes, jornais, revistas, documentos, pacotes e flores". Todas essas categorias de informações, porém, estão completamente tarjadas.
Milhares de páginas tarjadas. Há até o caso de um documento de 2.347 páginas tarjadas que, na prática, o governo contabiliza como um documento que foi "desclassificado". Em outro caso, um dos arquivos "desclassificados" consiste em um documento de quatro páginas no qual só é possível ver a data, "12 de agosto", e o que indica ser um ofício para uma autoridade do Palácio para tratar sobre "controle de acesso em áreas presidenciais".
Documento com apenas uma tarja. Do rol de documentos fornecidos ao UOL, o que possui menos tarjas é um ofício de 1º de março de 2021 do então chefe da divisão do Sistema Integrado de Supervisão, Jean Soares Amaral, ao coordenador-geral de Segurança de Instalações solicitando "gestões para que sejam classificados os ativos constantes no banco de dados do sistema de controle de acessos da Presidência da República".
Especialista vê entendimento ultrapassado. O advogado e diretor de Advocacy da ONG Fiquem Sabendo, Bruno Morassutti, considera que o GSI perpetua um entendimento anterior à Lei de Acesso à Informação, que prevê que as informações sobre as residências oficiais devem ser mantidas em sigilo por tempo indeterminado.
Ao manter em sigilo uma informação da qual já passou o prazo, a administração perpetua uma prática de sigilo eterno que foi encerrada pela Lei de Acesso à Informação.
Bruno Morassutti, diretor de advocacy da Fiquem Sabendo e membro do Conselho de Transparência, Integridade e Combate à Corrupção da CGU
O que dizem os órgãos
A Casa Civil, responsável pela desclassificação, diz que sigilo tem de ser mantido. "Nos casos de classificação de informações sigilosas, a desclassificação, seja por decurso de prazo, de ofício ou a pedido, não descaracteriza o sigilo específico a elas inerentes", afirma a pasta.
A CGU explica que registros de entrada e saída de pessoas em órgãos públicos são de acesso público, mas "há exceções previstas em lei". O Palácio da Alvorada e o Palácio do Jaburu, residências oficiais do presidente e do vice-presidente da República, respectivamente, seguiram protegidos por sigilo pelo enunciado nº 2/2023 da CGU, quando houve a modificação de outros sigilos, no início do ano passado.
É com base neste anunciado que o GSI, responsável pelos documentos, manteve o sigilo. "Por não constarem na agenda oficial, eles permanecem protegidos em conformidade com o CGU", afirmou o órgão, ao UOL.
Os registros de entrada e saída de pessoas em residências oficiais do presidente e do vice-presidente da República são informações que devem ser protegidas por revelarem aspectos da intimidade e vida privada das autoridades públicas e de seus familiares, salvo se tais registros disserem respeito a agendas oficiais, as quais têm como regra a publicidade, ou se referirem a agentes privados que estejam representando interesses junto à administração pública.
Enunciado CGU nº 2/2023, sobre registros de entrada e saída de residências oficiais
O sigilo específico não se submete aos prazos da classificação e nem às obrigações legais de tratamento da informação classificada junto à CGU e à CMRI, que monitoram a regularidade desde o ato de classificação até o procedimento final de desclassificação e destinação das informações.
Casa Civil, em resposta ao UOL
Governo quer aumentar transparência, mas mantém sigilos
A CGU quer propor mudanças na LAI para aumentar transparência. O órgão já enviou à Casa Civil um projeto que prevê alterações na lei vigente e busca, entre outras coisas, cumprir a promessa de Lula de pôr fim ao sigilo de 100 anos. Veja os três pontos principais:
- Acabar com os 100 anos. Alterar o artigo 31 da LAI, que coloca acesso restrito a dados de agentes públicos "independentemente de classificação de sigilo e com prazo máximo de 100 anos".
- Criar critérios objetivos para as respostas de LAI. Elaborar uma espécie de teste que respaldasse mais objetivamente se os pedidos devem ser aceitos ou negados e para que, no segundo caso, haja uma justificativa mais técnica e padronizada para a negativa.
- Estabelecer um tempo de revisão para os sigilos. Todos os sigilos seriam reavaliados por esses critérios e, assim, estes poderiam ser tirados ou não, automaticamente. A proposta inicial é de a cada dez anos ou quando provocado por qualquer cidadão, via LAI.
O projeto ainda está em debate. Pessoas ligadas ao governo dizem que a pauta da transparência deve avançar, mas que o texto, apresentado à SAJ (Secretaria Especial para Assuntos Jurídicos), também pode ser alterado.
Ainda assim, o governo continua estipulando sigilos. Apesar das promessas de Lula, o governo impôs um sigilo de 100 anos à Declaração de Conflito de Interesses do ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, entregue por ele ao assumir o cargo, no início do ano passado, e pedida pelo UOL em julho deste ano.
A decisão foi da CMRI (Comissão Mista de Reavaliação de Informações). A comissão, formada por integrantes do Executivo, afirmou que o documento, entregue por todos os ministros para informar se parentes de até terceiro grau exercem atividades que possam suscitar conflito de interesses com sua atividade no governo, aborda "aspectos da vida privada e intimidade do titular".
Inicialmente, a CGU tinha indicado sigilo fiscal, o que foi alterado pela CMRI. Sigilos fiscais têm tempo inferior a dez anos, mas ainda são superiores a um mandato presidencial. Não cabe recurso.