Enfim, inocentado e livre

Absolvido pela Justiça, homem ficou 3 anos preso sob acusação de ter matado a ex-mulher no interior de SP

Luís Adorno Do UOL, em São Paulo Zé Otávio

Juraci Rosa Damasceno, 50, ficou três anos preso em regime fechado e passou outros três anos aguardando a finalização de seu processo em liberdade até, em junho, ser absolvido de todas as acusações que pairavam contra ele.

Damasceno foi acusado pelo MP (Ministério Público) e pela Polícia Civil de ter assassinado a ex-mulher, Damaris Nozaki de Moura, em julho de 2013. Ela foi encontrada em um terreno baldio na pacata cidade de São Miguel Arcanjo, a 145 km da capital paulista.

Assim que a polícia encontrou o corpo, Damasceno e o pai de Damaris foram juntos ao local e reconheceram a mulher. Trinta dias depois, policiais algemaram e prenderam Damasceno sob a suspeita de ter sido o autor do feminicídio.

Em um júri realizado em agosto de 2016, foi absolvido. A promotoria pediu anulação do julgamento, que voltou a ser feito em junho deste ano. Por falta de provas, o próprio MP deixou de acusá-lo no segundo julgamento.

Seu processo foi extinto e, agora, Damasceno não deve nada à Justiça. Mas a prisão tirou dele tudo aquilo que ele havia conquistado. Damasceno tinha uma fazenda onde colhia eucaliptos. Atualmente, colhe eucaliptos para outros fazendeiros. Sua renda mensal girava em torno de R$ 12 mil por mês. Agora, ganha R$ 1.000 mensais. Os bens que havia conquistado foram utilizados em gastos com advogados para provar sua inocência.

Em depoimento ao UOL, Juraci Damasceno relata, abaixo, como é ficar preso apesar de inocente.

Algemas e armas contra o rosto

"Eu fui casado com a Damaris, minha ex-mulher, entre 1996 e 2000. Nós fomos morar no Japão e fizemos um filho, que nasceu lá. Tinha ido para lá para trabalhar, mas não consegui me acostumar. Vim para o Brasil em 2003 e ela ficou no Japão com nosso filho.

No meio do ano de 2003, ela decidiu mandar nosso filho para o Brasil. Nesse tempo, conheci outra pessoa, com quem tive dois filhos. Eu e Damaris viramos amigos, sempre conversávamos sobre nosso filho com muito respeito. Quando nosso filho já tinha 13 anos, ela foi encontrada em um terreno baldio, sem vida.

Eu estava voltando de Guapiara para São Miguel Arcanjo. Eu tinha uma fazenda e trabalhava com colheita de eucalipto. Naquele dia, um funcionário meu me ligou e disse que roubaram uma peça de um trator. Liguei para a polícia para fazer o boletim de ocorrência. Me disseram que não tinha como fazer o BO porque havia acontecido um homicídio na cidade. Eu nem tinha entendido porque não entendo de lei, de nada.

Voltamos para casa para almoçar. A avó dele disse ao nosso filho que a mãe dele não tinha voltado pra casa. Um corpo tinha sido encontrado. Fui com o avô dele ver o corpo. Lá, tinha uma faixa para as pessoas não chegarem perto. E deu para eu ver o short preto e a camisa branca, justo como a avó dele disse que ela estava vestida. Olhei para trás, e o pai dela já estava chorando, de joelho.

Em outro dia, voltei para São Miguel Arcanjo e fui à delegacia para fazer o BO do trator. Lá, o delegado quis falar comigo sobre a Damaris. Expliquei tudo direitinho. Ele me liberou rapidinho. Meu filho também foi ouvido.

Trinta dias depois, saindo da porteira da fazendo, chegaram dez carros de polícia, com armas apontadas para mim, para o meu rosto. Algemaram minhas mãos e me prenderam. Eu disse para o delegado que não era eu. Ele me falou que eu tinha que me virar e provar que eu era inocente."

Entre a polícia e o PCC

"Me levaram para a cadeia de Capão Bonito. Fiquei dormindo no chão por dois meses. Depois fui para Capela do Alto, com prisão preventiva. Mais dois meses dormindo no chão. Aí consegui um lugar para dormir onde fiquei três anos sofrendo, angustiado, acreditando em Deus. Eu acho que, se a pessoa deve, tem que pagar. Se eu tivesse errado, eu ia ficar bem quieto. Eu só trabalhava.

Lá era superlotado, tinha cerca de 250 pessoas presas. Tinha assassino, traficante, de tudo. Eu estava num lugar que parecia uma bomba atômica. Teve várias rebeliões lá. E aí fui para a parte da igreja.

A maioria das pessoas que lá estavam era ligada ao PCC (Primeiro Comando da Capital). Eles não me maltratavam. Tinha muitas pessoas de São Miguel Arcanjo presas lá. Então, muita gente me conhecia. Me fizeram várias perguntas logo de início.

Eles disseram que sabiam que não era eu que tinha matado Damaris, que sabiam quem foi, mas que eu não podia entregar ninguém. Perguntaram se queria a cobrança, que seria matar o cara, porque mataram ela sem o aval da facção. Eu falei para deixar ele no canto dele. Fiquei três anos nessa angústia.

Comecei a estudar. Me formei no colegial dentro da prisão, fiz 18 cursos técnicos, trabalhei na biblioteca. O diretor do presídio sabia que eu não tinha perfil de assassino. Eles sabiam que eu não era criminoso, mas que não podiam fazer nada porque foi o Estado que havia me colocado ali."

A vida em liberdade

"Teve o primeiro júri, e eu fui absolvido por falta de provas. Mesmo assim, o promotor recorreu, anulou o júri e fez um novo júri. Contratei os peritos, que praticamente não cobraram nada para me ajudar, e fizeram a perícia que comprovou que não era eu o culpado. A gente contratou um novo advogado. Hoje, eu não tenho dez centavos, tivemos que pagar tudo com o que eu e minha família tínhamos.

O MP tinha uma testemunha que tinha me acusado. Uma pessoa que tinha me visto às 4h e que estava vindo da festa do vinho. Ela falou que tinha bebido. Essa testemunha foi procurada e falou o que eles quiseram falar. Depois, voltou atrás. A própria perícia mostrou que era impossível um ser humano enxergar o que ela enxergou com tantos detalhes naquele estado.

A um mês do júri, o MP arrumou uma testemunha protegida. Na hora que chamaram a testemunha protegida, ela falou que não queria ser protegida porque não tinha o que esconder. Disse: 'Vim aqui porque tinha que vir. Eu não tenho o que fazer aqui. Me trouxeram praticamente à força. Os policiais mandaram eu falar isso e aquilo. E eu não vou acusar ninguém'. O juiz ouviu todo mundo, mas o promotor disse que não tinha como pedir condenação porque não tinha prova.

Não existiu perícia na faca, no sangue, no corpo, em nada. Fiquei três anos fechado. Saí em junho de 2016. Foram 1.080 dias em regime fechado, sendo humilhado, entre a faca e o facão. A polícia, eu passei a ver como inimiga, porque acabou com a minha vida. Do outro lado, tinha o crime: se eu pisasse na bola, eu dançava. Com certeza, quem matou Damaris está na cidade, de boa.

Entre junho de 2016 e de 2019, quando eu respondia em liberdade, era como se eu continuasse preso. Eu não conseguia emprego, porque tinha o tal dos antecedentes criminais. Com minha ficha suja, eu não conseguia nada. Eu tinha contas no banco e não consigo abrir mais conta, não consigo pagar as dívidas no banco. Estou com o nome sujo. O prejuízo que causaram na minha vida, na vida da minha família, é irreparável."

8 elementos foram base para extinguir o processo

Após o primeiro júri que absolveu Damasceno ter sido anulado, ele decidiu contratar os peritos Eduardo e Rosângela Llanos. Laudo técnico de 39 páginas apontou que Damasceno era inocente. Para isso, foram elencados os oito elementos probatórios listados abaixo, que serviram para a Justiça analisar e decidir extinguir o processo.

  1. O local do crime não foi periciado;
  2. A testemunha protegida que deu base à denúncia de autoria do crime não apresentou nenhuma informação plausível, estava bêbada e entrou em contradições;
  3. A coleta de impressões digitais foi contaminada e, posteriormente, descartada;
  4. O laudo necroscópico não determina a hora aproximada da morte. Também não foram coletadas evidências das unhas da vítima --mas ela se defendeu dos agressores antes de ser morta;
  5. Não foram solicitadas as mensagens trocadas entre eles, que demonstrariam harmonia entre o ex-casal;
  6. Perícias necessárias para determinar se o sangue encontrado na faca supostamente utilizada para cometer o crime, assim como seu DNA e digitais, nunca foram feitas;
  7. Damaris nunca comentou ter nenhum tipo de problema com seu ex-marido;
  8. Em depoimento, a testemunha protegida, diante de uma reprodução simulada dos fatos, não falou a verdade sobre a distância e o reconhecimento do réu.

"Segundo um completo análise dos fatos, provas periciais e testemunhas, é possível constatar que não existe nenhuma prova técnica ou cientifica que comprove a participação de Juraci Rosa Damasceno no crime", concluiu o laudo.

"Não tem valor que pague o que fizeram"

"Eu quero processar o Estado. Eu preciso fazer isso. Porque, como eu não fiz nada, quem errou foi o Estado. Policiais que não fizeram o serviço direito e a Justiça. Para que o Estado sinta [o prejuízo] em valor. O caso deles é dinheiro. Mas não tem valor que pague o que fizeram para mim. Se o Estado me oferecesse hoje R$ 100 milhões, não iria ressarcir 1% do prejuízo emocional na minha vida.

Hoje, eu digo com orgulho que meu nome é Juraci Damasceno, que tenho 50 anos, que trabalho como autônomo, cortando eucalipto, tirando uma média de R$ 1.000 por mês. E que sempre fui digno, um homem honrado.

Antes de ser preso, eu ganhava, em média, R$ 12 mil por mês. Agora, não tenho mais casa própria, tenho que morar de favor na casa de um irmão. E eu tinha tudo. Eu ajudava minha família, agora eles têm que me ajudar.

Mas, graças a Deus, a Justiça foi feita e provaram a minha inocência. Apesar que Justiça mesmo seria se todos os que me acusaram --policiais e promotores-- também pagassem por três anos no regime fechado. Se isso pudesse acontecer, eu não cobraria nem um centavo do Estado."

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