No oásis do petróleo, falta até aspirina na farmácia popular

André Borges
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Ruy Baron
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Enviados especiais a Coari (AM)

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Deborah Faleiros
Arte

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Com um calhamaço nas mãos, Sergina Melo da Silva deixa o barraco onde vive, na orla de Coari (AM), cruza uma ponte improvisada sobre a lama e exibe suas receitas médicas.

Há semanas, ela e o marido, José Aldesto Rodrigues Souza, tentam encontrar os remédios de que precisam na farmácia popular da prefeitura, a única que oferece medicamento gratuito no município. A resposta que ouvem ao chegar no balcão da FarmaCoari se alterna entre "está em falta", "já acabou" e "volta outro dia".

Sergina, que sofre com tontura frequente e tem problemas cardíacos, perdeu a mãe uma semana antes de conversar com a reportagem. "Ela não estava bem, ia até o hospital, pedia os exames. Diziam que ela não tinha nada e mandavam voltar para casa. Ela voltava, até que morreu", conta.

A poucos quilômetros do flutuante onde Sergina mora com a família, no bairro do Pêra, o pescador Luis Mendes Marinho vive o mesmo drama para conseguir remédios. Conta que já esteve diversas vezes na farmácia popular atrás dos medicamentos para a esposa, Cleomar Marinho, que tem anemia. "Nada, nada, não tem", diz ele, exibindo a receita.

A reportagem esteve na Farmácia Popular e verificou se havia disponibilidade de alguns remédios simples previstos nas receitas, como a cinarizina, uma medicação contra tontura e que custa menos de R$ 0,50 o comprimido. Não tinha. Nas prateleiras da farmácia popular, também faltavam polivitamínicos (suplementos), hidróxido de alumínio e AAS, o ácido acetilsalicílico.

"Não tem. A demanda é muito grande aqui, não dá tempo", disse a atendente, acrescentando que, quando uma pessoa vai até o local e não encontra o remédio, só resta retornar em outra data para tentar a sorte. "Não tem como avisar ou agendar. Tem que ficar vindo."

A reportagem também identificou desabastecimento de itens comuns na UBS (Unidade Básica de Saúde) no bairro Santa Efigênia. No posto médico, estavam vazias as gôndolas reservadas para remédios baratos, como dexametasona, um anti-inflamatório, e complexo B.

À falta de medicamentos, soma-se a precariedade na infraestrutura hospitalar e a impossibilidade de fazer qualquer tipo de atendimento de maior complexidade em Coari. Com seus 70 mil habitantes, o município não possui nenhuma UTI (Unidade de Terapia Intensiva). Qualquer cidadão que necessite deste tipo de tratamento ou internação tem de ser encaminhado de barco para Manaus, a mais de 400 km dali.

José Carlos Júnior, enfermeiro e diretor do Hospital Municipal de Coari, diz que a prefeitura faz o que pode e que o município recebe ajuda estadual, mas que não é suficiente. O governo federal, por meio do SUS, também repassa cerca de R$ 600 mil por mês.

"Se formos recorrer ao estado do Amazonas em relação a medicamentos, não somos atendidos", afirma Carlos Júnior. "Se a gente faz um pedido de 20 mil pares de luvas por mês a eles, por exemplo, eles não atendem, dizendo que estão com estoque zero. Então, fazemos de tudo para que não falte. Cerca de 90% do custo do hospital é do município."

A insuficiência de remédios e equipamentos das unidades de saúde em Coari contrasta com o visual de seus prédios públicos, que a prefeitura procura manter sempre com as fachadas pintadas. Internamente, porém, o hospital não possui equipamentos para exames de tomografia, tampouco uma UTI neonatal. Entre os casos mais recebidos na unidade estão aqueles relacionados a quedas de moto - é comum a circulação de pessoas sem capacete -, além de vítimas de assaltos, violência doméstica e sexual.

AO LADO DO TERMINAL DE PETRÓLEO, ALUNOS SEM MERENDA E FAMÍLIAS SEM ÁGUA

Na zona rural da província do petróleo amazônico, a escassez de recursos básicos também inclui a falta de água potável e até de merenda para alunos. Esta é a realidade no dia a dia dos moradores da Vila Lira, a 40 minutos de barco do centro de Coari.

A movimentação de navios no terminal de petróleo e gás da Transpetro, empresa de logística da Petrobras, acaba por camuflar a existência deste pequeno povoado de ribeirinhos, localizado a menos de 1 km da estrutura petroleira que funciona na margem do Solimões.

Sentada na porta de sua casa, a merendeira Maria Ioleida conta que, há muitos anos, lida com as dificuldades alimentares que envolvem a formação das crianças da Vila Lira, onde vivem cerca de 40 famílias. Uma vez por mês, é preciso seguir de barco, em uma viagem de 40 minutos, até a Prefeitura de Coari, para buscar a alimentação dos cerca de 50 alunos da Escola Municipal Clemente Vieira Soares.

Pelo cronograma estipulado pela gestão do município, o alimento deveria durar um mês, mas a pequena quantidade repassada à escola acaba em duas semanas, ou seja, as crianças ficam sem nenhuma alimentação escolar durante metade do mês. "Eles dão pouca merenda. Eles sabem a quantidade de alunos que tem aqui. Os alunos chegam, muitas vezes, sem ter comido em casa e querem merendar aqui, mas acabam ficando sem ter o que comer", diz Ioleida.

Com o sistema de filtragem de água quebrado, só resta à população recorrer à abertura das chamadas "cacimbas", pequenos poços que são furados em locais onde existam olhos d'água no solo. A seca histórica que castiga a região amazônica torna essa missão ainda mais complexa.

"A gente vive aqui por conta própria, sem ter assistência de nada. Os órgãos que poderiam ajudar a gente na agricultura, também não ajudam. A situação é difícil", afirma Francisco Rebouças de Souza, agricultor e morador da Vila Lira. Há mais de um ano, a água potável também se transformou em um drama para os moradores da vila. Em outubro de 2019, a prefeitura chegou a instalar uma caixa d'água com um filtro industrial para abastecer a comunidade local. O equipamento, erguido sobre uma estrutura de madeira, ganhou até placa de inauguração, para ostentar os nomes de políticos municipais e estaduais.

Desde o primeiro semestre de 2022, porém, o equipamento está parado, porque o filtro pifou. Os moradores afirmam que a prefeitura sabe da situação, mas não conserta o equipamento, que está com a base apodrecendo e sob risco de cair. O agricultor João Souza Tácio abre as torneiras secas abaixo da caixa d'água. "Tá desse jeito, nenhum pingo d'água. A gente não tem peça nem ferramenta para consertar isso, senão a gente resolvia, mas ninguém passou aqui pra dar jeito. Ficamos sem água", diz.

Aos 57 anos, Souza é nascido e criado na Vila Lira. Depois de décadas assistindo a navios de toda parte do mundo passarem na porta de sua casa, seu sentimento é de abandono. "A gente luta uma vida inteira, trabalhando, e no final das contas, não vê progredir em nada", diz o agricultor. "Vivemos ao lado desse terminal. O gás e o petróleo passam a menos de um quilômetro daqui, mas, como diz o ditado, ficamos só a ver navio. Se o gás e o petróleo são do Brasil, essa comunidade tinha que ser exemplar. Não tem nada."

Se os moradores da Vila Lira estão isolados e abandonados à própria sorte, o mesmo não se pode dizer sobre o transporte do gás e do óleo na região. Desde 2009, está em operação o gasoduto Urucu-Coari-Manaus, um duto de 663 km de extensão que interliga a província petrolífera à capital do Amazonas. Com capacidade de transportar até 5,5 milhões de metros cúbicos por dia de gás natural até Manaus, o gasoduto que custou R$ 4,5 bilhões tornou-se símbolo da engenharia moderna.

A reportagem questionou o prefeito de Coari, Keitton Pinheiro (PP), sobre a precariedade da infraestrutura de saúde, a falta de medicamentos, de água potável e de merenda escolar, além de explicações sobre qual tem sido a destinação dos recursos obtidos com a extração de petróleo. Só em 2022, Coari recebeu um total de R$ 136,3 milhões em royalties, o que equivale a um terço de tudo o que se pagou ao Amazonas, conforme os dados oficiais da Agência Nacional de Petróleo.

Por meio de nota, o prefeito culpou a dificuldade de transporte pela falta dos remédios, afirmou que recebe poucos recursos do governo estadual e disse que sua gestão tem aplicado os recursos conforme as necessidades da região.

Petrobras, União e Amazonas afirmam que gerenciamento dos royalties é atribuição dos municípios. Veja o que dizem os envolvidos com a extração de petróleo e gás em Coari e Silves.


Publicado em 6 de dezembro de 2023.