A luta do povo mura contra a exploração de gás

André Borges
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Ruy Baron
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Enviados especiais a Silves (AM)

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Deborah Faleiros
Arte

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O futuro do menino Jonas Júnior Mura já está traçado. Quando se tornar adulto, Juninho, hoje com dez anos, vai se casar com a pequena Angeli, agora com sete anos de idade. O casamento combinado pelos pais vai incluir, ainda, o "ritual da tucandeira", no qual o adolescente tem de colocar suas mãos dentro de luvas de palha com 200 formigas tucandeiras prontas para picá-lo.

Suportar a dor por cerca de 15 minutos faz parte do rito de passagem, uma tradição mantida pelo povo saterê-mawé. "Ele vai fazer o ritual. Isso já está decidido", diz o cacique Jonas Mura, acompanhado pelos olhos atentos do filho. O que não está decidido é em qual terra indígena o futuro casal viverá.

O povo mura, que habita seis aldeias espalhadas por Silves (AM), trava uma luta para ter as suas terras e direitos reconhecidos. A busca pela demarcação ocorre em meio à profusão de poços de gás abertos e explorados na floresta há quase três anos pela Eneva, uma gigante do setor energético que tem o banco BTG Pactual como seu maior sócio e se apresenta como a "detentora da maior área sob concessão exploratória onshore (terrestre) no Brasil, com mais de 63 mil km²".

Em outubro, a reportagem visitou as aldeias de Silves e as vilas ribeirinhas deste município que soma 12 mil habitantes, com território de 3.700 km², tamanho equivalente a quatro vezes a cidade de Campinas (SP). O trajeto também incluiu áreas da floresta onde sondas e maquinário pesado foram instalados para extrair gás do subsolo.

Os indígenas alegam que os estudos de demarcação de seu território tiveram início oficial em 2015 pela Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) e que a Eneva tem extraído gás de áreas que estariam dentro dessas terras requeridas, além de ter iniciado a exploração na região sem ter consultados os povos e baseada em um licenciamento ambiental sem o devido Estudo de Impacto Ambiental. A Eneva nega irregularidades e diz que seguiu as leis do país e regras vigentes no leilão.

Em maio, uma liminar da Justiça Federal chegou a suspender as licenças ambientais e pediu a paralisação das operações do Complexo do Azulão, operado pela Eneva. A Justiça Federal em Manaus atendeu ao pleito da Aspac (Associação de Silves pela Preservação Ambiental e Cultural) e dos indígenas, apontando que o processo de licenciamento teria de ser realizado pelo governo federal, e não pelo Ipaam (Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas), órgão do governo estadual que autorizou a operação do empreendimento em 2021.

Uma semana depois, a Eneva conseguiu reverter a decisão e voltou a operar os poços, além de dar andamento a audiências públicas previstas no processo de licenciamento do projeto de produção e escoamento de gás do complexo.

O cacique Jonas Mura, liderança indígena na região, é incisivo ao relatar que há poços de gás dentro da terra em processo de demarcação. "Existem poços que foram abertos e que hoje estão tampados, só esperando eles virem e reabrir para extrair o gás", afirma. "Há também poços que estão perfurando e fazendo testes dentro de nossa área."

A reportagem visitou um desses poços. A clareira aberta no meio da floresta pode ser acessada por meio de uma estrada de terra. No local, funcionários da Eneva que operavam o maquinário afirmaram que estavam ali havia cerca de dois meses, para testar a produtividade daquele poço, mas não quiseram dar mais informações.

Jonas Mura afirma que, quando passou a questionar a extração de gás e a mobilizar os povos indígenas da região, começou a receber "recados" com ameaças. "Eu recebia recados de pessoas que falavam isso, só que eu pensava que nunca ia acontecer. Num belo dia, eu tinha saído para pescar. Quando olhei, minha casa estava incendiando. Queimaram a minha casa e deixaram lá uma placa dizendo que o próximo vai ser o Jonas Mura", afirma o cacique da aldeia Gavião Real 1, onde vivem cerca de 600 pessoas.

O crime foi denunciado à Funai, ao Ministério Público Federal e à delegacia do município. Jonas Mura passou a fazer parte do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas, do governo federal. "Hoje, eu não falo para onde vou, que horas vou chegar, nem quando estou na área ou fora. Eu não paro em lugar nenhum por mais de dois dias. É o medo", diz o cacique.

Ivanilde do Santos Mura, que vive numa aldeia de 15 famílias, às margens do rio Anebá, em Silves, diz que seu povoado nunca foi informado sobre o que vem ocorrendo com a exploração de gás. "Nós vivemos aqui tranquilos, mas vêm outras pessoas para prejudicar o nosso rio, a nossa paz e a nossa riqueza. É nossa terra, é dela que tiramos o sustento."

O sentimento de insegurança também se espalha pelas famílias da aldeia Vila Barbosa, onde vivem famílias da etnia Sateré-Mawé. Rosa Marques Mawé, liderança nascida na vila, diz que a caça e a pesca têm ficado mais difíceis. "Estamos abandonados aqui, vendo essa movimentação, sem saber o que está acontecendo e sem sermos consultados", diz ela.

Na aldeia São Francisco, onde Apoliana Cardoso vive com a família, a queixa é a mesma. "Queríamos que eles tivessem um pouco de consciência e viessem procurar os povos indígenas para ter uma conversa. Eles, querendo ou não, sabem que existe gente nesta terra, que mora aqui e que é dono dela. Somos nós, povos indígenas", afirma. "Eles não podem simplesmente entrar e fazerem o que bem quiserem."

Longe das disputas por terra e das promessas de riqueza, o ribeirinho Nestor Lopes Cascais, 75, circula sozinho em sua canoa pelas margens do lago Canaçari. Há dez anos, ele percorre as margens do lago e do rio Urubu, que banham Silves, recolhendo restos de plástico e lixo que encontra na água.

Exibindo os pedaços de garrafas pet que recolheu naquele dia, ele critica a falta de cuidado com o meio ambiente. "Nós aqui da comunidade não enxergamos nada disso. Nós estamos vendo, mas ninguém enxerga", diz Cascais. "Isso passa por uma educação que teria que vir lá da escola, desde o princípio, batalhando pelo meio ambiente."

Questionado sobre o que ganha para fazer a coleta, o ribeirinho sorri. "Rapaz, eu recebo de Deus, trabalho nisso por livre e espontânea vontade."

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Publicado em 6 de dezembro de 2023.