Subornar para sobreviver

Na Coreia do Norte, propina é moeda de troca para ter acesso a serviços básicos e se manter vivo

Jamil Chade Colaboração para o UOL, em Genebra Danish Siddiqui/Reuters

Eles precisam subornar funcionários públicos, seguranças, representantes do governo central, da prefeitura e até do serviço secreto. O objetivo da propina não é obter contratos milionários ou desviar recursos públicos para contas secretas na Suíça.

O suborno, neste caso, serve apenas para comer, trabalhar, viajar, não ser torturado ou mesmo poder telefonar. Enfim, subornar para sobreviver. Com o colapso do sistema econômico em Pyongyang, essa é a realidade vivida por milhões de norte-coreanos, diariamente.

Os relatos e dados fazem parte de uma investigação conduzida pelo Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos e que revela como a administração centralizada da economia do país faliu há mais de 20 anos, dando lugar a um sistema corrupto.

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Subornos consomem 10% da renda da família

Para ter acesso a seus direitos mínimos, existe apenas uma regra: o pagamento de subornos. Algumas estimativas apontam que o dinheiro gasto em comprar autorizações inexistentes e simplesmente garantir vistas grossas por parte do regime superaria 10% da renda mensal de uma família.

O controle centralizado da economia tem suas origens ainda nos anos 1960. Mas sérios problemas vividos nos anos 1990 levaram a uma fome de proporções inéditas entre 1995 e 1998, deixando 1 milhão de mortos.

Na esperança de fazer o controle sobreviver, o governo abriu algumas brechas, permitindo certos tipos de mercados, com um total de 600 mil vendedores. Conhecidos como "jangmadang", esses mercados garantem o abastecimento para a economia e uma renda para parte da população.

Ainda assim, o governo manteve um amplo controle sua economia, com o regime determinando em grande parte os empregos de cada pessoa, assim como o montante de alimentos e locais de residência.

Atualmente, segundo a investigação, se cada um seguir simplesmente o sistema do estado de distribuição de serviços, morre. Hoje, 10,9 milhões de norte-coreanos estão em situação de desnutrição ou insegurança alimentar. Isso representa 43% da população --10% não tem acesso a água e 16% estão sem saneamento.

Ao mesmo tempo, a ONU constatou que o governo estava destinando "montantes de recursos desproporcionais em seus militares, gastos para o culto ao líder supremo, eventos de glorificação e a compra de bens de luxo para a elite". Cerca de um quarto do PIB (Produto Interno Bruto) do país vai para o setor militar.

Em mais de 200 entrevistas mantidas sob total anonimato e realizadas com norte-coreanos, o que se descobriu é uma vasta rede de mercado paralelo para permitir que as pessoas possam sobreviver. O anonimato tem um motivo também: ter a certeza de que essas pessoas não sejam assassinadas.

Esse sistema também se transformou numa indústria, com milhares de funcionários de baixo, médio e elevado escalão contando com os pagamentos diários para acrescentar às suas próprias rendas, que por si só são baixas.

Ou paga ou vai preso

Segundo os relatos, para arrecadar mais dinheiro, funcionários do Estado passaram a deter qualquer pessoa. Não porque cometeram algum crime ou para que de fato sejam punidos. Mas para que paguem subornos.

Um grupo revelou como foi detido por ter adquirido CDs contrabandeados com novelas sul-coreanas. Para não serem condenados a uma pena de um ano, pagaram o equivalente a US$ 1.000. Também passou a ser comum o pagamento de propinas em moeda chinesa.

Em outro relato, uma norte-coreana conta uma história parecida: que o pai foi pego distribuindo filmes, foi condenado a 12 anos e solto após suborno.

Fazer ligações ao exterior também é ilegal na Coreia do Norte. Vários relatos contam, entretanto, como pagamentos regulares a funcionários garantem que as ligações possam ocorrer, inclusive para falar com parentes na Coreia do Sul.

Meu pai distribuía filmes sul-coreanos, comprados na China. Ele foi pego pelo Ministério da Segurança. Ele foi processado e condenado a 12 anos de prisão. Mas minha família pagou uma propina, e ele foi solto

Relato de moradora norte-coreana, em entrevista à ONU

Ed JONES / AFP Ed JONES / AFP

Quanto custa não ser preso

Em alguns casos, os subornos são acumulados em vários órgãos. Segundo um dos entrevistados, um jovem foi detido em 9 de maio de 2015. "Eu fui informado que fui pego por estar conversando pelo telefone com minha irmã na Coreia do Sul. Fui condenado a um ano de prisão. Meu pai pagou uma propina para que eu fosse solto, alegando que tinha tuberculose", disse.

Mas a família teve de continuar a pagar propinas. Agora, os subornos iam para o hospital que, a cada trimestre, recebia 500 yuan chineses (o equivalente a R$ 284) para que o confirmassem como "doente". Para completar, outros pagamentos tinham de ser feitos às autoridades locais de seu vilarejo, para que não o denunciasse.

A chantagem continua até mesmo na prisão, onde os norte-coreanos detidos podem evitar a tortura se desembolsam certos valores aos seguranças. Para que sejam soltos, funciona a mesma regra: pagar.

Na condição de anonimato, uma das pessoas entrevistadas revelou como saiu da prisão. "Propinas são muito eficientes na Coreia do Norte", disse. "É injusto que uma pessoa não possa sair da prisão apenas por não ter dinheiro para pagar o suborno", afirmou.

Até mesmo o regime de visitas de parentes é determinado por pagamentos ilegais. "200 yuans chineses [R$ 113] te compra uma visita da família", contou outra testemunha. Outro relato colhido pela ONU de uma mulher norte-coreana revelou que ela vendeu suas propriedades para poder pagar pelas visitas ao marido, preso.

Em um outro caso, uma mulher diz que pagou propinas a guardas de uma prisão para garantir que a comida que ela fazia em sua casa fosse entregue ao marido na cadeia.

AFP

Um império de negócios clandestinos

O sistema de subornos também existe até mesmo para trabalhar. As estimativas apontam que 23% dos funcionários das empresas estatais têm algum tipo de negócio clandestino. As investigações revelam que mais da metade dessas estatais aceitam que seus trabalhadores faltem alguns dias da semana para poder tocar seus próprios negócios. Mas com uma condição: o pagamento de subornos.

"Eu pagava para não ir trabalhar", disse um norte-coreano, sempre na condição de anonimato. Segundo ele, o valor era de 30 yuans (R$ 17) por mês e o dinheiro ia para a gerência que controlava as ausências.

Num outro relato, um trabalhador indicou que chegava a pagar 25% de seu salário em propinas, justamente para poder tocar seu negócio informal. O dinheiro era usado para justificar suas ausências, mas também para que suas vendas não fossem confiscadas. Em alguns casos, o pagamento era em produtos, com a distribuição de cigarros e mesmo de mel.

Também foi constatado o pagamento de propinas para que os cidadãos fossem liberados de trabalhos comunitários. Segundo um dos relatos, um certo bairro foi mobilizado entre 5h e 8h da manhã para ajudar na construção de um prédio de nove andares.

Pelas regras, cada família deveria designar uma pessoa para prestar serviços por 350 dias em um ano. "Mas, como eu vivia sozinho, não tinha opção e precisava trabalhar. Ou então eu poderia pagar 30 yuan chineses para os oficiais da cidade", explicou.

Liberdade de movimento em xeque

O sistema de pagamentos também envolve a capacidade das pessoas de circular pela Coreia do Norte. Oficialmente, esse livre movimento é um direito no país. Mas, na prática, a circulação precisa passar por uma autorização.

"Nas estradas, existem muitos 'check-points' [postos de barreira]", disse outra testemunha. "Eles estão designados para monitorar a todos e deveriam identificar espiões. Têm o poder de controlar e verificar tudo nos carros. E a única forma de passar é pagando", disse.

O caso fica ainda mais dramático quando o assunto é cruzar fronteiras. Hoje, segundo o informe, isso depende mais uma vez de um só fator: o suborno.

Muitos são os norte-coreanos que escapam para a China. Mas, ao serem pegos, são devolvidos para seu país de origem. Para que não sejam levados a campos de trabalho onde serão mantidos por anos, é uma propina ao guarda de fronteira que garante que o boletim produzido seja mais suave.

Para a ONU, sem um Estado de Direito, os cidadãos são simplesmente expostos a prisões arbitrárias e extorsões praticamente diárias. Michelle Bachelet, chefe do escritório da ONU para Direitos Humanos, constata: os norte-coreanos passaram a ter de subornar o Estado para garantir seus direitos mínimos: alimentos, casa, trabalho e até a liberdade de se movimentar.

Procurado, o regime de Pyongyang garantiu que todos os relatos e dados apresentados pela ONU eram "mentirosos" e "sem base".

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